Malatesta: Ação e Pensamento Revolucionário, Parte 2: Notas Para Uma Biografia

Escrito por Vernon Richards e publicado originalmente no livro Errico Malatesta, His Life and Ideas (1965) pela editora londrina Freedom Press.

Disponível em <https://libcom.org/files/Malatesta%20-%20Life%20and%20Ideas.pdf>

Errico Malatesta por Pelecymus. Fonte: Deviantart

“...Seguimos as ideias e não os homens, e nos rebelamos contra esse hábito de encarnar  um princípio em um homem”.
Discurso de Malatesta no Congresso da Internacional, Berna, 1876

“Alguns de nós, Max Nettlau e Luigi Bertoni em particular, sugeriram a Malatesta que escrevesse suas memórias, pois constituiriam uma grande contribuição à história contemporânea e permitiriam compreender os feitos aos quais ele estava diretamente ligado. Ele respondeu: “Sim, algum dia… sem pressa: pensarei nisso quando não houver coisas mais importantes para fazer, quando eu for velho”. Mas sempre houveram coisas mais importantes para fazer e nunca admitiu que fosse velho, de modo que nunca escreveu suas memórias”.
Luigi Fabbri em sua biografia de Malatesta
(Buenos Aires, 1945)


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“...Assim deixei a Suíça com Cafiero. Estava doente, cuspia sangue e me disseram que eu estava com tuberculose, mais ou menos… Enquanto atravessava o passo de São Gotardo durante a noite – naquele tempo ainda não existia o túnel e era necessário atravessar a montanha congelada de carruagem – tomei friagem e cheguei com febre na casa de Zurique onde Bakunin morava.
Depois de nos cumprimentarmos, Bakunin preparou uma cama de viagem e me convidou – ou melhor, me forçou – a descansar, me cobriu com todas as mantas que pode encontrar e insistiu que eu repousasse e dormisse. Fez tudo isso com uma urgência e uma ternura maternas que chegaram ao meu coração.
Enquanto estava coberto pelas mantas e todos acreditavam que eu dormia, ouvi que Bakunin dizia coisas admiráveis a meu respeito e logo colocava melancolicamente: “É uma pena que esteja tão doente, nós o perderemos logo; não tem mais que seis meses de vida”.
Esta comovente descrição de seu primeiro encontro com Bakunin em 1872 foi escrita por Malatesta em 19261 quando este tinha 73 anos e fazia 51 que Bakunin jazia em sua tumba.
À época, outras pessoas se referiram aos problemas de saúde de Malatesta. Cafiero (em uma carta de 1875) falava do “pobre Malatesta, doente do peito” e pensava que, sem dúvidas, as intenções de seus perseguidores eram de “extinguir uma existência tão jovem e nobre entre as fétidas e silenciosas paredes de uma cela”2.
Borghi diz que “o aparelho respiratório de Malatesta seguiu sendo, com certeza, seu ponto fraco durante toda sua vida”, e mais: “...não esquecerei nunca as crises que provocaram os ataques brônquicos na cela fétida de Milão no frio inverno de 1920-1921”3.
Sua companheira, Elena Melli, durante os últimos anos de sua vida, numa carta a Damián (28 de julho de 1932), descreve as últimas semanas de sua vida: “Acabava de superar uma pneumonia, uma recaída ocorreu há apenas algumas semanas. Parecia estar melhor e fora de perigo, mas estava cada vez mais debilitado: podia perceber dia a dia… No entanto, ele não acreditava que estava próximo da morte até que se engasgou com outro ataque do lado esquerdo… Durante os últimos dias respirava fatigado, se engasgava apesar de todo oxigênio – 1.500 litros em cinco horas… -. Morreu na sexta-feira 22 [de julho de 1932] às 00:20h4”.


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George Woodcock, na sua recente história do anarquismo escreve5:
“Em meados de 1871,  porém, apareceu um novo grupo de militantes, de caráter diferente dos veteranos de lutas anteriores, que se reuniram em torno de Bakunin no começo. Seus líderes, Carlo Cafiero, Errico Malatesta e Carmelo Palladino, eram todos jovens que tinham em torno dos vinte anos, filhos educados de proprietários de terras do sul da Itália; todos vinham de regiões onde onde a pobreza camponesa era endêmica… constituíam, de fato, o equivalente aos nobres russos de consciência culpada, que na mesma década sentiram enorme urgência de 'ir até o povo'”.
Ao menos no que se refere a Malatesta, a comparação não se adequa aos dados disponíveis.
Não se sabe muito de Palladino, a não ser que era um jovem advogado, e que havia desenvolvido grande atividade na seção de Nápoles da Internacional de 1869 a 1871; que visitou Bakunin na companhia de Cafiero no final de 1872 e que mudou-se para Locarno em 1874, depois do fracasso do movimento insurrecionário italiano daquele ano, mas, eventualmente, voltou a Cagnamo Varano, “onde morreu muitos anos mais tarde em circunstâncias trágicas”6.
Carlo Cafiero (nasceu em Barletta em 1846 numa “família rica e reacionária”)7 foi membro da Internacional de Londres e Marx se propunha a utilizá-lo para ajudar a converter a Itália e a Espanha ao marxismo. Quando retornou para a Itália, foi ao contrário, ele mesmo se converteu, em partes pelo esforço de Malatesta. Bakunin completou a “conversão” no ano seguinte. Cafiero seguiu em atividade até 1882, quando passou a apoiar a causa da socialdemocracia. Um ano mais tarde sofreu de problemas mentais dos quais nunca se recuperou. Morreu num manicômio em 1892.
Errico Malatesta nasceu em Santa Maria Capua Vetere (uma guarnição com população de 10.000 habitantes, na província de Caserta) em 14 de dezembro de 1853. Sabe-se muito pouco sobre seus antecedentes familiares. A ideia difundida de que pertencia à nobreza carece de fontes. Fabbri8 descreve o pai de Malatesta como “um homem de ideias liberais moderados” e “um rico proprietário de terras”. Segundo Nettlau9, a família vinha da “pequena-burguesia e se dedicava ao comércio”, esta descrição era confirmada por Borghi10, que conta que Malatesta se divertia muito com sua suposta descendência de Segismundo Malatesta, “o famoso tirano de Rimini”, que no século XV ergueu um templo para Deus e para sua amante Isotta. Não corria nenhum sangue azul em suas veias: “sua mãe e seu pai foram modestos e lembrados proprietários de terras”.
Pelo relato de Malatesta sobre seu primeiro encontro com Bakunin em 187211 aprendemos que sua mãe e seu pai, junto com o irmão e a irmã, haviam morrido de “dores do peito”, e em outro artigo de lembranças políticas de Giusseppe Fanelli, ele recorda que nessa época (1871) “era um estudante e vivia com uma velha tia que serviu de mãe depois da morte de seus progenitores”12.
“A Internacional foi introduzida na Itália por burgueses que, com seu amor pela justiça, desertaram de sua classe e, em 1872, e também mais tarde, em muitos lugares, a maioria, ou pelo menos os líderes e elementos ativos não eram trabalhadores, e sim jovens de classe média e classe média-baixa”13.


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Em meados de 1871, Malatesta não estava nos "20 e poucos anos”, ele tinha apenas 17 anos completos e já se mostrava ativo na luta política.
Aos 14 anos dirigiu uma carta ao rei Vítor Emanuel II, em protesto contra uma injustiça local, que Fabbri 14 descreveu como “insolente e ameaçadora”. As autoridades levaram tão a sério que decretaram sua prisão, ocorrida em 25 de março de 1868. Com a ajuda de amigos, seu pai conseguiu libertá-lo da prisão e também da ameaça de que seria enviado a uma escola especial “em vista do fato de que sua família havia descuidado da tarefa de educá-lo como um fiel súdito da coroa”15.
Enquanto jantava, na noite de sua libertação, seu pai tratou de censurá-lo, ou ao menos avisá-lo que fosse mais prudente no futuro. Fabbri diz que a resposta do jovem Malatesta foi tão intransigente que tudo que seu pai pode dizer, com lágrimas nos olhos, foi: “Pobre filho, odeio dizer mas, desse jeito, vai acabar na forca”16.
Dois anos mais tarde, em 1870, segundo Angiolini17, foi preso e condenado em Nápoles depois de uma manifestação e “suspenso” por um ano da Universidade de Nápoles, onde estudava medicina.
A educação escolar de Malatesta começou no liceu de Santa Maria, mas em seguida mudou-se com os pais para Nápoles, onde frequentou a escola dos padres Escolápios (ordem religiosa dedicada à educação) e estudou os clássicos18.
“Eu me dediquei então (1868) ao estudo da retórica, da história romana e da filosofia de Gioberti. No entanto, meu professores falharam ao tentar me sufocar com a força da natureza, de modo que consegui preservar minha saúde mental e a pureza do meu coração, e protegê-las da estupidez corruptora da escola moderna”19.
  Dos Escolápios passou a frequentar a Faculdade de Medicina da Universidade de Nápoles. Pôde completar pelo menos três anos de seus estudos antes de ingressar na Internacional, mas os anos que vieram após essa importante decisão estão tão carregados de atividade política e revolucionária que é improvável que Malatesta tenha chegado a completar o curso20.

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Aos 14 anos de idade era um republicano germinal, e com o tempo solicitou ingresso na Aliança Universal Republicana, mas Mazzini rechaçou sua solicitação alegando que suas tendências eram excessivamente socialistas e que logo passaria à Internacional. Era a primeira vez que Malatesta tinha ouvido falar na Internacional. Para satisfazer sua curiosidade insaciável se dedicou a pesquisar mais; no curso de sua pesquisa encontrou alguns membros da seção italiana da Internacional e passou a ser influenciado por Fanelli e Palladino. Se juntou à Internacional em 1871, poucos meses depois dos “inspiradores” acontecimentos da Comuna de Paris. Seu ingresso na seção de Nápoles marcou o começo de uma nova fase de atividade dentro da seção. Além de um grupo de trabalhadores, vários companheiros de estudos21 o seguiram. Mostrava não apenas uma grande capacidade de trabalho mas também de força para inspirar aos que o cercavam, característica que conservou durante toda sua vida.
Muitos anos depois descreveu a vida de um militante naqueles dias de “entusiasmo”, quando os Internacionalistas estavam “sempre prontos a sacrificar tudo pela causa e se sentiam encorajados pelas esperanças mais rosadas”22.
“Todos dedicavam tudo o que podiam à propaganda e inclusive o que não podiam se permitir, e quando o dinheiro era pouco vendiam alegremente os objetos de sua casa e aceitavam com resignação as censuras de suas respectivas famílias. Por causa da propaganda se descuidavam do trabalho e dos estudos. De qualquer forma, a revolução poderia estourar a qualquer momento e consertar tudo! Muitas vezes alguém terminava preso, mas saía de lá com mais energia que antes: as perseguições só conseguiam deixar mais consciente nosso entusiasmo. É verdade que as perseguições de então eram brincadeira em comparação ao que aconteceria mais tarde. Naquela época o regime havia saído de uma série de revoluções, e as autoridades, rígidas desde o começo nos enfrentamentos com os trabalhadores,  principalmente no campo, demonstrava certo respeito pela liberdade da luta política, uma espécie de estorvo semelhante ao dos governantes austríacos e os Bourbons, que desapareceu tão imediatamente o regime se consolidou e a luta pela independência nacional foi relegada ao segundo plano”23.
Mas Malatesta não vacilava em afirmar todos os falsos pressupostos políticos com que eles se alimentavam nessa época de entusiasmos.
“Nós acreditávamos no descontentamento geral, e posto que a miséria que afligia a massa do povo era verdadeiramente insuportável, pensávamos que teria sido suficiente dar o exemplo e com as armas em mãos lançar o slogan 'abaixo à nobreza' para que as massas trabalhadoras depusessem a burguesia e tomassem posse das terras, das fábricas e de tudo que haviam produzido com seu cansaço e que lhes havia sido subtraído. Tínhamos uma fé mística na virtude do povo, nas suas capacidades, nos seus instintos igualitários e libertários.
Os fatos demonstraram então, e mais tarde – e já o haviam demonstrado antes – quão longe estávamos da verdade. Estava muito claro que ter fome, quando não se tem consciência de seus próprios direitos e nenhuma ideia que orienta a ação, não conduz a resultados revolucionários: no máximo revoltas esporádicas que os senhores, se tem um pouco de sensatez, podem controlar facilmente distribuindo pão e jogando de suas varandas poucas moedas à multidão que clama ao invés de ordenar que a polícia atire sobre ela. E se nossos desejos não tivessem cegado nossa capacidade de observação, teríamos notado facilmente o efeito deprimente da fome e o fato de nossa propaganda fazer mais efeito nas regiões menos deprimidas e entre os trabalhadores, em sua maioria artesãos, que sofriam menos de problemas financeiros”24.
Diferentemente de muitos revolucionários que nunca viram o bosque da realidade porque estavam impedidos pelas árvores de seus sonhos, Malatesta, num estágio inicial de sua vida política, submetia todas as esperanças e teorias de seus contemporâneos e professores a prova crítica da realidade. É importante ressaltar, no entanto, que como tantas vezes acontece, enquanto o tipo revolucionário missionários com o olhar sobre as estrelas e o ativista que pratica a ação e despreza todos os que se atrevem a parar e pensar, perdem rapidamente seu céu missionário e consagram seu ativismo a objetivos mais mundanos, Malatesta nunca abandonou sua atividade revolucionário nem perdeu seu otimismo, otimismo esse que devemos considerar muito mais como confiança em si mesmo e seus amigos íntimos do que como a fé cega em algum milênio anarquista ou socialista.
Em um raro artigo autobiográfico escrito em 184425, quando tinha 30 anos, e destinado a advertir e incitar a juventude da época, Malatesta descreve seus próprios sentimentos de adolescência, suas aspirações de “um mundo ideal” e sua fé na “república” - para quem ele havia visto pela primeira vez do interior de uma prisão do reino, o que o permitiu tornar-se consciente, ao entrar no mundo da realidade, dos problemas que teria que superar para alcançar seu mundo ideal, e do fato de que a república era um governo como qualquer outro, e às vezes, inclusive, pior.

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Malatesta compreendeu cedo os perigos do culto à personalidade, sem nunca chegar, entretanto, a subestimar o valor do homem, ou a deixar de reconhecer as excepcionais qualidades dos outros ou a influências que elas exerciam sobre seu próprio desenvolvimento. O fato de que em sua primeira juventude teve que escolher entre uma galáxia de “grandes homens” - Garibaldi, Mazzini, Marx, Bakunin – pode ter-lhe dado uma compreensão antecipada dos perigos que surgiam de associar as ideias com as personalidades. Na verdade, no Oitavo Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores, celebrado em Berna em outubro de 1876, Malatesta, que foi um dos delegados italianos, protestou contra o hábito de denominar-se ou de serem conhecidos como bakuninistas, “posto que não o somos, já que não compartilhamos de todas as ideias práticas e teóricas de Bakunin, e sobretudo porque seguimos as ideias e não os homens, e nos rebelamos contra este hábito de encarnar um princípio em um homem”.
E quanto Mazzini se refere à maneira que “talvez irritado por ter sido privado de tal papado que exerceu durante muitos anos sobre o movimento revolucionário, atacou a Comuna e a Internacional e impediu seus seguidores de darem os passos que estavam dando”26. E escreve sobre os seguidores de Garibaldi e de “seu duce27 [Mussolini havia nomeado a si mesmo “Il duce” (termo italiano para líder), e posto que a referência de Malatesta à Garibaldi foi escrita em 1928, quando Mussolini estava no auge de seu poder, o motivo de Malatesta ter utilizado este termo no caso de Garibaldi dificilmente pode ser considerado como lisonjeiro).
Entretanto, talvez porque combatia a ideia do super-homem, era tão generoso ao afirmar as qualidades e feitos de seus contemporâneos e “mentores”, como severo ao admitir compromissos de sua crítica aos defeitos pessoais destes e do que ele considerava como seus erros políticos. Este enfoque está bem ilustrado pelo artigo de Malatesta que contém suas recordações sobre Kropotkin, incluído ao final destas Notas, e na sua breve, porém generosa defesa de Mazzini (1922): “Estivemos contra Mazzini por conta de seu modo de conceber a luta social, pela missão providencial que atribuía à Itália e à Roma, pelo seu dogmatismo religioso.
Sempre houveram, como ocorre no calor da luta, excessos e incompreensões de ambas as partes, mas com espírito de objetividade reconhecemos que, no fundo do nosso coração e dos sentimentos que nos inspiraram, fomos mazzinianos tal como Mazzini foi internacionalista.
Existiram e continuam existindo diferenças fundamentais de método, tal como houveram e continuam havendo, ainda, diferenças básicas nos conceitos filosóficos, mas o espírito animador era o mesmo. O amor entre os homens, a irmandade entre os povos, a justiça social e a solidariedade, o espírito de sacrifício, de dever. Aparte disso, o decisivo e inconciliável ódio pela instituição monárquica”28.

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Bakunin ocupa um lugar de honra entre as pessoas que influenciaram seu desenvolvimento. Malatesta se referiu a ele como “o grande revolucionário, aquele ao qual todos olhamos como nosso pai espiritual”. Sua maior qualidade era a capacidade de “comunicar a fé, o desejo da ação e do sacrifício a todos que tiveram oportunidade de conhecê-lo. Costumava dizer que era necessário ter o diabo no corpo e com certeza o tinha, no seu corpo e no seu espírito.
Eu fui bakuninista, como foram todos os meus companheiros daqueles dias longínquos. Hoje – e por muitíssimos anos – já não poderia me descrever mais como tal.
As ideias haviam se desenvolvido e modificado. Hoje sinto que Bakunin, na sua economia política e na sua interpretação da história, é marxista demais: acredito que sua filosofia é arrastada, sem possibilidade de salvação, dada a contradição entre a concepção mecanicista do universo e a crença na vontade contraposta ao destino inexorável do gênero humano. Mas isto não tem grande importância. As teorias são incertas e as concepções mudam: e a filosofia, feita de hipóteses, que habitam nas nuvens, tem pouca ou nenhuma influência sobre a vida. E Bakunin continua sendo sempre, apesar de todas as possíveis divergências, nosso grande mestre e inspirador.
O que permanece vivo é sua crítica radical ao princípio de autoridade e ao Estado que o encarna; se mantém viva a luta contra as duas mentiras, os dois modos como são oprimidas e exploradas as massas: a democracia e a ditadura; está viva sua denúncia magistral contra esse falso socialismo, que ele chamou de enfadonho, e que tende, consciente ou inconscientemente, a consolidar o domínio da burguesia, adormecendo os trabalhadores na inatividade com suas inúteis reformas. E segue vivo, sobretudo, o ódio intenso contra tudo o que degrada e humilha o homem e o amor sem limites pela liberdade de todos”29.

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Mas como ele mesmo escreveu sobre esse período, “ainda que nenhum de nós tivéssemos lido Marx, éramos, todavia, marxistas demais”30. Fabbri considerou que o período de transição entre o anarquismo da Internacional e o que ele expôs até o fim de sua vida ocorreu durante os sete ou oito anos que vão da publicação do L'Associazione (Londres, 1890) à do L'Agitazione (Ancona, 1897). Entretanto, o mesmo autor observa que já no La Questione Sociale (Florença, 1884) “certas concepções fundamentais de sua evolução se revelam claramente”. Foi no L'Agitazione onde Malatesta publicou uma série de seis artigos sobre “O individualismo no anarquismo”, “Harmonia e Organização” [Organização I e II ??], nos quais, sem polemizar abertamente com Kropotkin, dá uma interpretação do anarquismo que está em aberta contradição com o ponto de vista kropotkiniano expresso n'A Conquista do Pão e outros escritos dessa época31. Malatesta descreve sua “evolução” em uma carta dirigida a Fabbri32 na qual confirma o ponto de vista deste último, de que desde 1897 suas opiniões haviam mudado apenas em pequenos detalhes. Nessa época “eu tinha mais fé, mais esperanças no sindicalismo – ou melhor, nos sindicatos – do que tenho agora, e o comunismo parecia então uma solução mais simples e mais fácil do que parece hoje”. E segue afirmando que havia uma grande diferença entre suas ideias de 1897 e as de 1872-73-74. “Depois éramos kropotkinianos antes mesmo de Kropotkin (de fato, as ideias que Kropotkin descobriu e as que ele se apropriou já eram amplamente sustentadas por nós antes que ele entrasse na ala 'bakuninista' do movimento internacional)”. Volta a este ponto de maneira mais detida num artigo sobre a “questão do revisionismo” (1927) e também em suas Recordações de Kropotkin, que incluímos em apêndice nestas Notas.

8 Malatesta foi o propagandista “completo” do anarquismo. No começo de sua vida política perdeu todas as ilusões que poderia ter tido acerca da inevitabilidade histórica e compreendeu que ele somente poderia sacudir as pessoas se as tirasse de sua apatia e “impulsioná-las” (spingere é sua palavra preferida, encontrada constantemente em seus escritos) a pensar e agir por si mesmas, as coisas mudariam. Era portanto um incansável propagandista da palavra escrita e falada. Mas também se deu conta dos limites da propaganda enquanto tal, era além de tudo um ativista que considerava a ação direta, concebida de forma inteligente, como um aspecto vital da tarefa de preparar o terreno para a revolução. O terceiro ingrediente deste propagandista “completo” do anarquismo era a circunstância de que começou enquanto internacionalista e o seguiu sendo até o fim de seus dias. (Diferentemente dos nossos intelectuais exilados que denunciam tudo que é inglês e vivem como grandes senhores em países que, além do clima, do baixo custo de vida e da mão-de-obra barata, estão ainda um século atrás da Albion [grego antigo para Grã-Bretanha, por conta de suas falésias] traída em seus costumes e suas leis, Malatesta foi realmente um internacionalista porque amava a humanidade sem deixar de amar a Itália: “Talvez seja absurdo – escreveu uma vez em resposta a um companheiro chocado – pensar que quem ama a todos os países, quem considera o mundo como seu país ideal e trata de transformá-lo em um verdadeiro país para todos os homens, ligados pela irmandade no trabalho e na felicidade, deva fazer uma exceção a respeito do país que nasceu e das pessoas com quem tem as maiores afinidades e vínculos?… Viva a Itália, sim, mil vezes sim: e viva a todos os países do mundo. E devemos entender não os estados políticos que gostaríamos de ver destruídos, sim os povos, emancipados de todas as opressões políticas e econômicas33). Se Malatesta dedicou boa parte de sua atividade e pensamento ao cenário político foi porque se sentia mais capaz de contribuir efetivamente à luta em um país e entre as pessoas com que compartilhava – entre outras coisas – uma língua comum. Como ele disse: “Para nós, nossa pátria é o mundo inteiro; toda conquista humana é nossa assim como é toda vergonha humana. Itália é parte do mundo e se dedicamos nossos esforços especialmente à sua libertação, isso ocorre porque no caso desse país nossa atividade pode ser eficaz, já que ali estão nossos parentes, amigos e companheiros, que amamos de uma maneira única… Mas tudo isso é tão óbvio, tão elementar, tão comum, que ter que falar tantas vezes acaba sendo um esforço custoso para quem tem que repetí-lo”34.

9 Por causa da especial atenção dedicada pelo governo e pela polícia italianos, Malatesta passou quase metade de sua vida no exílio. O primeiro período que passou exilado começou em 1878, quando tinha 25 anos. Voltou para a Itália em 1883 mas se foi para a América do Sul no ano seguinte; não retornou até 1897, quando dirigiu L'Agitazione, mas em 1899 estava de novo no exílio. Voltou à Itália entre 1913-14 ficando por volta de um ano, e até 1919 não conseguiu colocar de novo os pés em seu país, onde passou os 13 anos seguintes, até sua morte em 1932 (exceto por uma breve visita à Suíça em 1922, na ocasião do 50º aniversário da conferência da Internacional de Saint-Imier, na qual havia sido delegado da seção de Nápoles em sua juventude). Assim, Malatesta viveu 35 anos de sua vida no exílio, onde boa parte do tempo se dedicou à sua atividade, mas também passou muitos períodos frustrado pela inatividade. Entretanto, fica claro que mesmo exilado nunca perdeu contato com a situação política italiana. No momento em que estamos escrevendo estas linhas o Sunday Telegraph (25-10-64) proporciona uma resenha da obra de Joll sobre os anarquistas35 com uma reprodução de uma foto de Malatesta com a legenda “Um tipo perigoso”. O professor George Woodcock em sua História perpetua a imagem romântica do “cavaleiro errante” que corre o mundo da Europa ao Levante “em busca de aventuras revolucionárias”. Outros acusavam Malatesta de ser um covarde que nunca havia se detido a enfrentar as consequências de suas ações. Malatesta era um “tipo perigoso”, mas não da maneira que compreendia o Sunday Telegraph, que intitula sua resenha de “Uma gangue fútil”. Era perigoso para os governos, mas as pessoas que o conheceu em suas viagens pelo mundo o respeitavam enquanto homem íntegro e de visão. Sua vida estava cheia de incidentes “românticos” quando vistos de maneira retrospectiva ou quando quem os vê são literatos que em sua vida nunca disseram uma palavra mesmo em situações de extrema raiva, porém estava claro após os primeiros anos, nos quais Malatesta e seus amigos procuraram a detenção e prisão como parte de suas atividades de propaganda, que ele não considerava que sua efetividade enquanto propagandista fora maior no cárcere do que quando estava em liberdade, até mesmo quando estava exilado. Por outro lado isso não impediu que ele corresse grandes riscos, mas eram o que poderíamos chamar de riscos calculados. Malatesta, da maneira que eu vejo, não era nem um tipo romântico nem com vocação para mártir. Porém não lhe faltava senso de humor, nem subestimava seu valor enquanto pensador e como personalidade política, ainda que nunca tenha sido um exibicionista ou um poseur. Obviamente ele buscava aprovação e conseguir seguidores, mas sempre embasado na força de seus argumentos, sem nunca buscar comprometê-los ou alimentar o culto de sua personalidade. O fato é que as ideias e ações de Malatesta provocaram discussões calorosas não somente entre a esquerda italiana mas dentro do próprio movimento anarquista. Somente depois de sua morte é que suas ideias deixaram de ser o centro de uma feroz discussão no movimento anarquista italiano. Talvez agora a discussão possa ser retomada dentro do movimento de língua inglesa!

10 Que Malatesta estava longe de ser um revolucionário em busca de aventuras o mostram, com certeza, os anos relativamente inativos – 1900 a 1919 – que passou em Londres e que só foram interrompidos por sua participação no Congresso Internacional Anarquista de Amsterdã (1907) e o período de menos de um ano (1913 – 1914) que passou na Itália. Sua contribuição no Congresso é notável por conta das sugestões práticas que contém e seu enfoque. Na última parte desse volume farei referência às contribuições de Malatesta a esse Congresso. O regresso de Malatesta à Itália (1913-14) é um modelo de perfeição e energia que colocava em toda tarefa ou comissão que empreendia (e devemos ter em mente que no momento estava com 60 anos, idade em que muitos revolucionários estavam mortos ou dormindo sobre os louros e escrevendo suas memórias). Sua decisão foi precipitada por uma série de considerações, sendo que a principal delas era o “pressentimento” político de que a situação italiana, após a guerra impopular de Trípoli, estava madura para alguma iniciativa “prática”. Nessa época o movimento anarquista italiano estava impregnado de polêmicas internas e pessoais, em grande medida resultado da atividade de vários “companheiros” que com o tempo transferiram suas atividades para os partidos burgueses, como ocorre geralmente; com o propósito de reunificar o movimento César Agostinelli, fabricante de chapéus de Ancona e velho companheiro de armas de Malatesta, foi visitá-lo em Londres, e depois a Fabbri, que estava trabalhando nessa época como professor numa aldeia em Emília, e os expôs sua ideia de publicar um diário anarquista em Ancona. Ambos responderam com entusiasmo. Fabbri se encarregou de redigir uma circular anunciando a próxima publicação, que Malatesta sugeriu o nome de Volontà. O primeiro número apareceu em Ancona em junho de 1913 e era dirigido por Malatesta de Londres. Fabbri escreveu que “desde o princípio o novo periódico levava a marca dos primeiros dias de Malatesta36. Porém no que diz respeito ao número de apresentação, Malatesta escreveu de Londres a seu amigo (13 de junho): “O que você acha do primeiro número de Volontà? Tipograficamente é horrível, a qualidade do papel me faz estremecer, a tinta pálida sobre o papel cinzento… os tipos lotados demais, etc. Entretanto… melhoraremos”. Em 16 de junho escreveu para Agostinelli: “Chegou o segundo número. O fizemos muito melhor! Se continuarmos melhorando acabaremos fazendo algo muito bom. Esta noite irei te enviar o artigo de fundo. Chegará para você na sexta. Trate de guardar espaço. Estou atrasado, esperando o momento para terminá-lo. Porém no futuro tentarei compensar e não adicionar esta dificuldade às que você já tem...”37. Cito este excerto porque me parece jogar mais luz sobre o caráter, a simplicidade, o calor humano e o espírito de camaradagem de Malatesta, do que qualquer outra coisa que uma terceira pessoa pudesse escrever a respeito. No decorrer de sua carta a Fabbri, Malatesta confia um segredo “que te fará feliz: decidi voltar para a Itália”. À Luigi Bertoni, diretor da publicação anarquista bimestral Le Reveil (O Despertar), publicado durante muitos anos em Genebra, escreveu em 3 de julho de 1913: “Decidi partir para a Itália até o final de janeiro. Francamente, penso que é impossível publicar desta distância um diário que satisfaça as necessidades da situação mundial, e além disso, detesto incitar os outros à ação enquanto permaneço tranquilamente afastado [em Londres]”38. A atividade de Malatesta como organizador, propagandista e agitador revolucionário durante esse período de menos de um ano pode ser conhecida em detalhes graças ao fato de que no decorrer de um bombardeio aliado à Ancona, durante a última guerra, um posto policial foi destruído. Dois anarquistas que procuravam entre os destroços encontraram o registro policial sobre Malatesta, que Borghi publicou como apêndice à edição pós-guerra de sua biografia deste último39. O material impresso pertencia ao diário do capitão de polícia de Ancona. “A volta de Malatesta de Londres marca o despertar do partido anarquista de Ancona, que havia sido reduzido a uns poucos 'grupos desorganizados e inativos' sem recursos. Malatesta se colocou a reorganizá-lo em seguida. Iniciou a propaganda revolucionária em assembleias, reuniões e através de artigos que publicou no semanário Volontà que ele dirige e que também é órgão do partido”. Em novembro de 1913, depois de ter reunido todos os elementos anarquistas de Ancona, Malatesta inaugurou com êxito um Círculo de Estudos Sociais onde os membros e simpatizantes se encontravam para realizar leituras sobre temas sociais, discussões e reuniões de propaganda, que eram presididas pelo próprio Malatesta com frequência. Em pouco tempo o número de anarquistas e simpatizantes em Ancona chegava ao redor de 600 pessoas, predominantemente “estivadores e elementos criminosos da cidade”. Segue uma lista dos mais proeminentes anarquistas da cidade, menos Malatesta, “que é o líder indiscutível”. Essa lista inclui 33 nomes que, a julgar por suas ocupações, profissões ou idades, constituem evidentemente uma parcela representativa da comunidade trabalhadora. Inclui sapateiros, carpinteiros, estivadores, vendedores de rua, cabeleireiros, empregados do comércio e um estudante. Suas idades vão desde os 20 anos, e predominam os que tem 30 ou mais. O capitão também anotou em seu diário que Malatesta tinha uma subscrição que permitia que viajasse a qualquer parte do território pela estrada de ferro, e que “viajava muito frequentemente mantendo-se em contato com os líderes mais importantes e com ligação constante com demais grupos anarquistas”. E dá a impressão que a seguinte anotação está escrita com uma mescla de temor e admiração pelo homem: “Suas qualidades como orador inteligente e combativo, que trata de persuadir com palavras serenas e nunca violentas, são utilizadas plenamente para reavivar as forças esgotadas do partido e minar as bases do Estado, impedindo seu funcionamento, paralisando seus serviços e fazendo propaganda antimilitarista, até que chegue a oportunidade propícia para derrotar e destruir o Estado existente”. Aqueles que subestimam a percepção da polícia certamente fariam uma exceção neste caso! Nessa época Malatesta afirmava sem parar àqueles que tratavam de colocar em seus lábios palavras que nunca havia pronunciado, para lançar ataques contra ele, que o que ele dizia deveria ser claro como cristal e que não podia ser interpretado erroneamente. E podemos adicionar agora que, sequer a polícia poderia deixar de entender as observações que ele fazia! De agosto de 1913 à maior de 1914 o capitão registrou 37 “manifestações anarquistas” notáveis na província, 21 das quais Malatesta tomou parte como orador ou membro de um painel de oradores. Sequer o capitão conseguia dizer quantas reuniões privadas frequentou nesses meses, pois observa: “O trabalho organizativo de Malatesta é difícil de ser penetrado devido à prudência com que este atua e a discrição de seus amigos de confiança e a seriedade que os rodeia”. Seu camarada de armas e biógrafo, Fabbri40, conta que durante seu breve retorno à Itália, Malatesta também proferiu conferências e falou em reuniões nas principais cidades do país: Roma, Milão, Florência, Turim, Liorne, etc, e na condição de periodista frequentou conferências de diversos partidos e organizações de trabalhadores de esquerda, que o interessavam sobretudo para medir o papel que poderia se esperar que desempenhariam na sublevação revolucionária na qual depositava suas esperanças.

11 Ao final do breve retorno de Malatesta à Itália estourou a “Semana Vermelha” (junho de 1914). No Freedom foi publicado o seguinte informe sobre “A greve geral e a insurreição da Itália”, assinado por Malatesta, que estava de volta a Londres depois de ter evitado com dificuldade ser detido41. “Os acontecimentos que ocorreram recentemente são de máxima importância, não tanto em si mesmos mas como indício da disposição do povo italiano e do que podemos antecipar para um futuro próximo. A causa imediata do estouro foi um massacre de manifestantes desarmados, atacados pelos soldados da cidade de Ancona. Durante um ano as organizações revolucionárias e trabalhistas de todas as matizes políticas estiveram realizando manifestações em prol das vítimas do despotismo militar e da abolição dos batalhões disciplinares, aos quais são enviados jovens soldados conhecidos por seus pontos de vista antimonárquicos e suas opiniões antiburguesas. O tratamento era bárbaro e os pobres coitados submetidos a todo tipo de torturas psicológicas e físicas. Enquanto reuniões e manifestações aconteciam por toda Itália, em datas diferentes, pareciam produzir fraca pressão sobre o governo, o Conselho do Trabalho de Ancona propôs então organizar manifestações em todo o país no mesmo dia, que coincidia com a data da celebração oficial em que foi estabelecida a unidade italiana e da monarquia. Como nestas ocasiões sempre se realizam desfiles militares, os camaradas pensaram que o governo se veria obrigado a adiar o desfile para contar com as tropas necessárias a fim de manter a 'ordem', e que toda atenção do público estaria voltada ao objeto da manifestação. A ideia formulada pelos camaradas de Ancona foi recebida com entusiasmo em todas as partes, por todos os partidos de oposição. O ministro ordenou que a polícia impedisse toda manifestação público. Como era de se supor, isso não nos dissuadiu. De fato, havíamos contado com a proibição policial para dar mais publicidade à manifestação e instigar as massas a resistir. Para conter as pessoas que saíam da sala de reuniões e impedi-las de chegar à praça central em manifestação os soldados dispararam contra a multidão desarmada, assassinaram três trabalhadores e feriram mais vinte. Depois deste massacre os soldados assustados bateram em retirada até os quartéis em busca de proteção, e o povo tomou conta da cidade. Sem que ninguém mencionasse a palavra em seguida teve início uma greve geral completa e os trabalhadores se reuniram no Conselho do Trabalho para realizar uma assembleia. O governo tratou de impedir que os acontecimentos de Ancona chegassem por telégrafo a outros lugares do país, mas no entanto as notícias se espalharam rapidamente e estouraram greves em todas as cidades da Itália. As duas organizações sindicais nacionais da Itália, a Confederação Geral do Trabalho, de caráter reformista, e a União Sindical, de tendência revolucionária, proclamaram uma greve geral, assim como o Sindicato de Trabalhadores Ferroviários. Estas greves e demonstrações ocorridas em várias cidades provocaram novos conflitos com a polícia e novos massacres. Em seguida, sem que houvesse qualquer entendimento prévio, enquanto um lugar ignorava o que estava acontecendo nos demais, posto que as comunicações estavam interrompidas, o movimento assumiu em todas as partes um caráter insurrecionário, e em muitos lugares a República foi proclamada, o que significava, para o povo, a Comuna autônoma. Todos marchavam esplendidamente; o movimento se desenvolvia e a greve ferroviária, que se difundia em todas as linhas, paralisava o governo; os trabalhadores estavam começando a tomar medidas de comunismo prático com o objetivo de reorganizar a vida social sobre novas bases. Porém, repentinamente, a Confederação Geral do Trabalho, num ato qualificado de traição, ordenou a suspensão da greve que com ele produziu confusão e desalento entre os trabalhadores. O governo não demorou para se aproveitar da situação e começou a restabelecer a 'ordem'. Não fosse a traição da Confederação, ainda que não tivéssemos realizado a revolução por causa da falta de preparação e a compreensão necessárias, o movimento teria assumido, com certeza, proporções e uma importância muito maiores. De todos os modos, estes eventos demonstraram que a massa do povo odeia a ordem atual, que os trabalhadores estão dispostos a aproveitar todas as oportunidades possíveis para derrotar o governo, e que quando a luta se volta ao inimigo em comum – a dizer, contra o governo e a burguesia – todos somos irmãos, ainda que possamos parecer divididos pelos nomes socialistas, anarquistas, sindicalistas ou republicanos. Agora cabe aos revolucionários aproveitar essa boa disposição”.

12 Pouco depois de seu retorno a Londres começou a guerra (agosto de 1914) e não somente qualquer atividade anarquista tornou-se mais difícil por causa de suas restrições físicas, como também o fato de que o próprio movimento anarquista estava dividido à respeito do que a conflagração significava e boa parte de sua atividade esteve paralisada por conta das polêmicas internas. No Freedom, em novembro de 1914, é possível encontrar artigos de Kropotkin, Jean Grave, Tcherkessoff e uma carta do anarquista Verleben, todos eles argumentando sobre os motivos pelos quais os anarquistas deveriam apoiar a causa dos Aliados. Uma contribuição de Malatesta estava destinada a rechaçar os raciocínios dos autores citados: “Os anarquistas esqueceram seus princípios” (ver Apêndice I). O título é pouco oportuno, tendo em vista que segundo observa Malatesta no primeiro parágrafo, se aplicava à uma minoria dos anarquistas, ainda que entre eles houvessem “camaradas que amamos e respeitamos muito”, embora o autor do recente estudo The Anarchists42 utilizou-se do título para deduzir que Malatesta era  uma voz solitária que pregava no deserto contra os anarquistas partidários da guerra: “Ele [Malatesta] polemizou com Kropotkin sobre o apoio que esse dava à guerra e continuou sendo uma voz da consciência anarquista que declarava constantemente que – para citar o título de um de seus artigos de 1914, em inglês – 'Os anarquistas esqueceram seus princípios'”. Como Joll observou mais tarde: “[em 1919] Malatesta voltou-se em triunfo” (p. 179), e a “posição” de Kropotkin quando este retornou à Rússia no verão de 1917 “era estranha, pois seu apoio à guerra o havia afastado de quase todos os revolucionários de esquerda” (p. 180). Na verdade, salvo pelo fato de que o atual diretor do Freedom, Thomas Keell – que se opunha à guerra assim como Malatesta e a esmagadora maioria do movimento anarquista –, se preocupou enquanto diretor de um periódico anarquista de dar aos “anarquistas que estavam em favor da guerra” uma oportunidade mais que ampla de serem ouvidos, Kropotkin e seus partidários se encontraram na solidão política antes mesmo que isso ocorresse. Quando a Itália se uniu aos Aliados, Malatesta reiterou sua oposição à guerra em um artigo cujo título Itália também! (Freedom, junho de 1915). Nesse artigo Malatesta lamenta que apesar do “fato de que a grande maioria dos socialistas e sindicalistas, e todos os anarquistas (exceto muito poucos deles) estavam decididamente contra a guerra”, o que “nos inspirou a confiança de que a Itália escaparia ao massacre e conservaria suas forças para a tarefa da paz e da civilização”, ela “foi arrastada à carnificina”. E completa: “Não conhecemos, por falta de informação confiável, a atual situação da Itália e quais são os verdadeiros fatores que levaram a uma mudança tão rápida na atitude do país. Porém as notícias recebidas em Londres revelam um rasgo resgatável. O governo italiano sentiu que não poderia fazer a guerra com segurança sem suprimir todas as liberdades e encarcerar um grande número de anarquistas. Isso significa que os anarquistas se mantém leais às suas bandeiras até o fim e, o que é mais importante, que o governo teme sua influência sobre as massas. Isto nos dá segurança de que tão logo se acalme a febre bélica, poderemos começar de novo nossa própria guerra – a guerra em favor da liberdade humana, da igualdade e da fraternidade – e em melhores condições que antes, porque o povo haverá realizado outra experiência, e que terrível!...”. Em 1916 Malatesta replica nas colunas editoriais do Freedom43 o “Manifesto à favor da guerra” assinado por Kropotkin, Jean Grave, Malato e outros treze “velhos companheiros”: reconhece a “boa fé e as intenções” dos assinantes e os coloca “acima de qualquer suspeita”, porém afirma que deve dissociar-se de “companheiros que se consideram capazes de conciliar as ideias anarquistas com a cooperação dos governos e das classes capitalistas de certos países em sua luta contra os capitalistas e governos de outros países”. Porém ele já havia feito isto em uma carta dirigida ao Freedom44 nos primeiros meses da guerra, em resposta ao artigo de Kropotkin no qual este argumentava que “um propagandista antimilitarismo não deveria nunca colaborar com a agitação antimilitarista sem comprometer-se íntima e solenemente a si mesmo que no caso de uma guerra estourar, apesar de todos os esforços para impedi-la, ele daria pleno apoio prático ao país que fosse invadido por um vizinho, qualquer que fosse esse vizinho. Com efeito, se os antimilitaristas se mantém como meros observadores da guerra, apoiam os invasores com sua inação, os ajudam a escravizar os povos conquistados e a tornarem-se mais fortes, com o qual constituirão um obstáculo maior ainda para a revolução social no futuro”. A resposta de Malatesta estava concebida em termos conciliatórios, ainda que ele tenha sido obviamente claro que não havia nenhuma possibilidade de que Kropotkin “enxergasse seu erro”, tendo em vista o fato conhecido de que durante dez anos estava “pregando contra o 'perigo alemão'”. “Querido companheiro: permita-me dizer umas poucas palavras sobre o artigo de Kropotkin acerca do antimilitarismo publicado no último número. Na minha opinião, o antimilitarismo é uma doutrina que afirma que o serviço militar constitui uma ocupação abominável e assassina, e que o homem não deveria nunca consentir em tomar as armas sob as ordens se seus senhores, e não deveria nunca pelear a não ser a favor da revolução social. Isto equivale a entender o antimilitarismo de maneira errada? Kropotkin parece ter esquecido o antagonismo entre as classes, a necessidade da emancipação econômica e todos os ensinamentos anarquistas, e diz que um antimilitarista deve estar sempre pronto, no caso da guerra estourar, para pegar em armas em apoio do 'país que seja invadido'; considerando a impossibilidade, ao menos para um trabalhador comum, de verificar a tempo qual é o verdadeiro agressor, significa na prática que o 'antimilitarismo' de Kropotkin deve obedecer sempre às ordens de seu governo. O que resta deste antimilitarismo, e, na verdade, inclusive do próprio anarquismo? Kropotkin renuncia de fato ao antimilitarismo porque pensa que as questões nacionais devem ser resolvidas antes da questão social. Para nós, as rivalidades e ódios nacionais se encontram entre os melhores meios dos quais os senhores dispõem para perpetuar a escravidão dos trabalhadores, e devemos nos opor a eles com toda nossa força. O mesmo é verdadeiro em relação ao direito de pequenas nacionalidades a preservar, por exemplo, sua língua e costumes, que é simplesmente uma questão de liberdade e só encontrará uma solução real e final quando, uma vez destruídos os estados, cada grupo humano, mais ainda, cada indivíduo, tenha direito de se associar com qualquer outro grupo e de separar-se dele. A mim é extremamente penoso me opor a um amigo querido como Kropotkin, que tem feito tanto pela causa do anarquismo, porém pela mesma razão que Kropotkin é tão estimado e tão amado por nós, tenho que tornar conhecido que não concordo com suas expressões sobre a guerra. Sei que essa atitude de Kropotkin não é exatamente nova, e que há dez anos ele vem pregando contra o 'perigo alemão', e confesso que estávamos equivocados ao não atribuir importância ao seu patriotismo franco-russo e ao não prever até onde o levariam seus preconceitos anti-germânicos, porque entendemos que se propunha a convidar os trabalhadores franceses a responder a uma possível invasão alemã realizando uma revolução social, isto é, tomar posse do solo francês e tratar de induzir os trabalhadores alemães a se solidarizar com eles na luta contra os opressores franceses e alemães. Na verdade, nunca poderíamos ter sonhado que Kropotkin convidaria os trabalhadores à causa comum dos governos e patrões. Espero que compreenda seu erro e se coloque de novo ao lado dos trabalhadores e contra todos os burgueses: alemães, ingleses, franceses, russos, belgas, etc.
Fraternalmente seu, E. Malatesta”.
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Malatesta passou muitos anos de seu exílio em Londres. Quando ali chegou, em 1900, tinha 47 anos e estava no ápice de sua capacidade intelectual, e à parte do período 1913-14 que passou tão ativo na Itália, permaneceu em Londres até o fim de 1919. Por que este velho internacionalista se manteve relativamente inativo durante tantos anos? É significativo que inclusive Nettlau, na sua detalhada biografia de Malatesta, não tenha nada a dizer sobre estes anos, além de suas referências à sua posição contra a guerra e o julgamento por difamação contra Malatesta (em 1913), que o valeu uma sentença de prisão por seis meses e uma proposta de deportação, não executada, no entanto, pelo ministro do Interior graças às amplas manifestações e protestos que mostraram claramente o grande afeto de que Malatesta gozava em amplos círculos de seu país. Sabemos que Keell, vinculado ao Freedom durante a maior parte desse anos, como impressor e mais tarde como diretor, tinha grande consideração por ele, e no Freedom Bulletin de dezembro de 1932, que era um número dedicado à memória de Malatesta, Keell conta que “se o pedia que escrevesse um artigo ele recusava no início dizendo que tínhamos que conseguir companheiros ingleses que escrevessem para um periódico inglês, mas no fim ele habitualmente consentia”. A julgar pelo número de seus artigos que encontramos nos arquivos do Freedom correspondentes a esses anos, só podemos chegar à conclusão de que não o solicitavam muitas vezes! Em que medida Malatesta estava inibido para colaborar com o movimento inglês e contribuir com Freedom devido à suas diferenças com Kropotkin, com o qual ele sempre evitou emplacar uma polêmica pública, ainda que isto não o tivesse impedido de prosseguir sua própria linha de pensamento em todos os seus escritos em italiano? Nettlau, numa importante série de artigos sobre Malatesta publicados após sua morte45, explica que sua resistência a polemizar com Kropotkin não se dava por “razões de amizade, e sim porque ele pensava que a posição que Kropotkin havia adquirido entre o público dos países mais importantes por conta de sua personalidade, sua inteligência e seu prestígio, era um capital de grande importância para o movimento anarquista”, e que só quando Kropotkin tratou de utilizar esse prestígio a favor dos Aliados na Primeira Guerra Mundial foi que Malatesta se sentiu obrigado a enfrentar seu velho amigo e companheiro. 14 Além de contribuir com uma grande quantidade de periódicos – e, é claro, muitos de seus artigos foram traduzidos e publicados no mundo todo –, Malatesta foi diretor de vários deles, porém nunca durante muito tempo, sobretudo devido à vigilância policial ou à repressão governamental. Essa lista inclui46 Questione Sociale (Florência, 1883-84); Buenos Aires, 1885; Paterson N. J., (1899-1900), L'Associazione (Ancona, 1889-90), L'Agitazione (Ancona, 1897-98), Volontà (Ancona, 1913-14), Umanità Nova (1920-22), Pensiero e Volontà (1924-26). Malatesta nunca escreveu uma obra de grande alento sobre suas ideias e os meios pelos quais pensava que poderia levá-las a cabo, ainda que encontramos alusões em uma carta dirigida a Fabbri47 no sentido de que poderia fazer algo para agradá-lo a esse respeito, assim como nunca escreveu suas memórias, apesar de todo tipo de ofertas atraentes que fizeram os editores para induzi-lo a isso. Seus opúsculos, a maior parte escritos no final do século passado [XVIII], incluem A Anarquia (1891) e os famosos diálogos cujos títulos são Entre camponeses (1884), Nas eleições (1890), No café (1902), que tiveram êxito imenso na época, mas hoje somos muito refinados para fazer nossa propaganda dessa maneira – agora ela é feita “ao vivo” pela televisão!
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Depois de tantos anos de frustração passados em Londres durante a guerra de 1914-18, Malatesta, depois de muitas dificuldades, ele conseguiu voltar para a Itália no fim de 1919, e os três anos seguintes – fora um período de dez meses que passou encarcerado – foram talvez os mais ativos e frutíferos de sua longa vida, ainda que uma vez mais a esperada insurreição não tenha se materializado, e a derrota do movimento operário italiano viria a ser marcada pela “marcha” de Mussolini até o poder. Além de dirigir um diário anarquista Umanità Nova, Malatesta proferiu discursos em assembleias por toda a Itália e tratou de reunir todos os elementos revolucionários do Partido Socialista e dos partidos republicanos, e os que participavam do movimento sindical. Um estudo detalhado deste período compensaria amplamente o esforço dedicado, porque não somente proporcionaria uma imagem clara da atividade de Malatesta e de seu método de trabalho, mas também mostraria em que medida um movimento sem muitos recursos e que incluía em seu seio todas as matizes do anarquismo, desde de os que se opõe à organização até os que acreditam nela, poderiam colaborar em uma causa comum. Supostamente, poderíamos ver as debilidades e dificuldades, mas também encontraríamos, na minha opinião, deficiências ainda maiores nos movimentos antifascistas e revolucionários, apesar (ou talvez por causa de?) de sua estrutura autoritária. Os anarquistas não conseguiram deter Mussolini, assim como aconteceu com o Partido Socialista e o Comunista e com as organizações sindicais. Umanità Nova conseguiu sobreviver por mais dois anos contra todo tipo de dificuldades físicas, desde o racionamento de papel até a destruição das prensas e das oficinas por gangues de jovens fascistas, e no seu momento de maior circulação chegou a 50.000 exemplares diários. No ápice da agitação dos trabalhadores industriais, Malatesta, Borghi – que era secretário da União Sindical Italiana, entidade sindicalista revolucionária que surgiu depois da guerra e contava com mais de 500.000 membros – e mais 80 anarquistas foram presos, em outubro de 1920, e seguiram encarcerados esperando julgamento até o mês de julho do ano seguinte. Nesse julgamento, que durou quatro dias, e Malatesta usado de forma muito eficazmente para defender sua causa política, foram absolvidos pelo júri e libertados48. Malatesta mudou-se para Roma, cidade para a qual haviam transferido o diário Umanità Nova em maio de 1921, e retomou sua atividade na publicação “dando-lhe uma orientação mais afinada com o que estava acontecendo” (Fabbri) e, ao mesmo tempo, “tratando de unir todas as forças revolucionárias e libertárias da resistência”. Sua tarefa parecia mais difícil porque tinha que combater não apenas a oposição e a sabotagem das lideranças sindicais reformistas, como também contra a hostilidade do Partido Comunista recém criado, que tratava de destruir e desacreditar todas as forças da classe trabalhadora que não fossem suas próprias crias. Havia também, como afirma Fabbri, o começo de uma crise interna do próprio movimento anarquista – que em certas regiões da Itália, por conta do gangsterismo fascista, foi reduzido à impotência –, e Malatesta utilizou todo seu tato e experiência para manter o movimento unido. Durante esse período, além de participar de atividades internas do movimento, Malatesta desempenhou um grande papel na criação da Aliança dos Trabalhadores, que tratava de reunir as forças antifascistas e congregava todas as organizações sindicais. Enfrentando a crescente provocação dos fascistas, a Aliança jogou sua última carta: a greve geral. No fim de julho teve lugar a greve geral, “e – segundo Fabbri – ocorreu com êxito por todo o país, pelo menos onde as circunstâncias ainda permitiam; entretanto o movimento desesperado não alcançou seu objetivo e foi afogado em sangue pelas hordas fascistas e a polícia oficial”. No que diz respeito às atividades de propaganda, a situação piorou rapidamente. No momento era impossível distribuir Umanità Nova fora de Roma e seu distrito, tendo em vista que os pacotes diários eram sequestrados pelas autoridades postais ou nas agências distribuidoras de jornais e queimados em seguida, destinou que padeceu não apenas a imprensa anarquista mas também todas as publicações antifascistas. Devido às circunstâncias Umanità Nova cessou suas publicações diárias em agosto de 1922 e apareceu como semanário no final daquele ano, quando Malatesta e alguns anarquistas vinculados à publicação foram presos e processados. Porém se tratava, obviamente, de um pretexto para destruir o jornal, porque eles foram soltos pouco tempo depois sem qualquer julgamento. (A “marcha” de Mussolini sobre Roma ocorreu em outubro de 1922.) 16 Como não enxergava nenhuma possibilidade imediata de continuar suas atividades propagandísticas, Malatesta deixou sua pena e pegou na caixa de ferramentas, e aos 70 anos de idade começou a trabalhar de novo como mecânico eletricista. Escreveu ocasionalmente, entretanto, em outros dois periódicos anarquistas que continuaram saindo com intermitências durante algum tempo: Il libero accordo, velho diário anarquista dirigido por Temistocle Monticelli, e Fede!, semanário fundado por Gigi Damiani49. O septuagésimo aniversário de Malatesta (dezembro de 1923) foi ocasião para reuniões públicas em Paris, Buenos Aires e outros lugares, inclusive em Roma e outras cidades da Itália houveram celebrações, porém apenas reuniões privadas devido à repressão política. Mas igualmente importante foi a decisão de muitos de seus amigos, de dar-lhe a oportunidade de continuar contribuindo para as ideias anarquistas livre das necessidades cotidianas de ganhar a vida com seu ofício. De fato, no início de 1924 publicou o primeiro número de uma revista quinzenal, Pensiero e Volontà50. No primeiro ano de sua publicação foi implantada a censura de imprensa depois do assassinato de Matteotti (junho de 1924), deputado socialista cuja morte despertou ampla comoção que chegou a ameaçar a estabilidade do regime fascista, e a revista apareceu com regularidade (24 números), mas sua existência se tornou cada vez mais difícil. Em 1925 apareceram apenas 16 números, e a seção “Notícias da quinzena” foi proibida pelas autoridades. Com o tempo foram excluídos ainda os artigos teóricos pelo censor, e em 1926 apareceram mais 16 números, enquanto outros 5 sofreram grandes mutilações por conta da censura. O último número foi publicado em 10 de outubro de 1926. Antes de aparecer o próximo, o anarquista Anteo Zamboni seu objetivo falido contra a vida de Mussolini, e este foi um pretexto para que o governo fascista suprimisse toda a imprensa antifascista da Itália, e também a que era simplesmente independente. Nettlau51 considera que Malatesta publicou no Pensiero e Volontà “muitos de seus escritos maduros”, e os leitores deste volume terão oportunidade de julgá-los por si mesmos, posto que me inspirei grandemente neles; e Fabbri adiciona que através do periódico, Malatesta havia conseguido “permanecer em contato com companheiros de todas as partes da Itália e do exterior, e seguir participando, dentro do possível, no movimento ativo”. Com a supressão de Pensiero e Volontà se calou “para sempre” a voz de Malatesta na Itália, ainda que este tenha contribuído com uma quantidade de importantes artigos às publicações anarquistas internacionais, e com o que Nettlau, a meu parecer acerta, considera “uma produção de valor imensurável e notabilíssima dentro da literatura anarquista, algo baseado na experiência e numa profunda reflexão...”52. A qualidade desses escritos pode ser julgada mediante suas Recordações de Kropotkin, que foi provavelmente o últimos desses escritos ocasionais que redigiu nos últimos 5 anos de sua vida53. Notável em sua longa introdução ao exaustivo estudo de Nettlau sobre a Internacional na Itália (1928)54, e sua serena e equânime polêmica com os revisionistas (Makhno e outros) em 192755. Não era nenhuma novidade para Malatesta que investigadores seguiam seus passos e seus movimentos foram observados pela polícia de todo mundo. Desde o fim de 1926 até a sua morte, em 1932, viveu em Roma sob prisão domiciliar. Havia um guarda da polícia permanentemente na porta de sua casa, onde morava com sua companheira e sua filha, e um policial que ficava de guarda dia e noite na porta de seu departamento. Ele prendia todos que vinham visitá-lo, e quando saía, prendia qualquer um que se aproximava. Fabbri e outros camaradas de Paris e da Suíça tentaram persuadi-lo a abandonar a Itália, mas ele insistiu que se ainda era capaz de fazer algo, o faria permanecendo na Itália e não no exílio. Em 1930, época em que parecia ter perdido suas últimas esperanças de alguma mudança rápida de regime e estava preparado para ir embora, já era tarde demais.
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Malatesta deve ter conhecido uma grande quantidade dos anarquistas mais ativos e “eminentes” do movimento internacional, pois houveram períodos de sua vida em que viajou muito, e muitas vezes participou das lutas nos países que visitava, e tenho a impressão de que a falta de dogmatismo no seu enfoque do anarquismo e da luta havia nascido de suas experiências com os diferentes problemas e possibilidades revolucionárias que distinguiam um país do outro. Nettlau sintetizou brevemente as atividades de Malatesta fora da Itália56. “Suas viagens e a residência temporária deram a ele oportunidade de realizar novas experiências locais e de ajudar companheiros de vários lugares. Na Suíça visitou Locarno e Lugano em várias oportunidades; viu amigos russos de Bakunin em 1872, 1873 e até em 1875; também James Guillaume e os jurassianos; esteve em Zurique e Berna, em Genebra quando foi fundado Révolte (fevereiro de 1879) e em outras ocasiões, e pela última vez em 1914, quando fugiu da Itália. Permaneceu em Paris por vários meses em 1879 e 1880 e no começo de 1881; desenvolveu grande atividade nos primeiros grupos anarquistas da cidade, logo o expulsaram, voltou novamente, foi preso e permaneceu no cárcere por haver regressado ao país. Entretanto, fundo em 1889 L'Associazione em Nizas, mas logo teve que ir embora; esteve em Paris na data em que ocorreu o movimento do Primeiro de Maio de 1890, e sem dúvida em outras ocasiões, porém nunca com residência permanente; voltou a passar por ali em 1914, na ocasião do seu precipitado retorno a Londres. No outono de 1875 viajou para a Espanha; visitou Madri, Cádis e Barcelona, e viu os militantes da Internacional, que estavam banidos (1891) mas continuavam trabalhando clandestinamente. Fez a viagem abertamente, e uma grande turnê de conferências, de novembro de 1891 até janeiro de 1892, porém o propósito profundo era a preparação do Primeiro de Maio revolucionário de 1892. Ocorreu a trágica revolta de Jerez de la Frontera, na Andaluzia, e teve que interromper sua turnê e deixar o país de maneira precipitada; chegou desta vez a Londres via Lisboa. No Egito, em 1878 e 1882, e na Romênia, em 1879, viveu num meio italiano, ainda que tivesse chegado ao primeiro desses países em 1882 com finalidades revolucionárias vinculadas à revolta de nativos na época de Orabi Paxá. Tratou, por razões românticas – rivalidade entre o espírito de luta dos jovens internacionalistas e os jovens garibaldinos –, de unir-se aos sérvios na sua guerra contra a Turquia em 1876, mas foi detido duas vezes na Áustria-Hungria e enviado de volta à Itália. Passou algum tempo na Bélgica em 1880 e uns poucos dias em 1881. Visitou o país em 1893 durante a greve geral política, e também em 1907, durante a violenta greve de estivadores da Antuérpia. Conheceu a Holanda na época do Congresso Anarquista de Amsterdã, também em 1907. Em Londres frequentou os primeiros dias do movimento socialista e conheceu muito bem Joseph Lane e Frank Kitz. Ao retornar em outubro de 1889, uma das primeiras visitas que realizou foi à Liga Socialista, onde visitou William Morris. Minha amizade com ele data dessa mesma noite e durou até uma carta que me enviou em 31 de maio de 1932, que foi a última que recebi. Pronunciou conferências em Nova York e na maioria das cidades industriais da costa oriental dos Estados Unidos onde viviam trabalhadores italianos (1899-1900). Em 1900 viajou para Cuba para dar conferências em espanhol. Na República Argentina, suas atividades se estendem de 1885 até a primeira metade de 1889, e marcam o começo de um movimento mais intenso e coordenado no país. Depois da Revolução Russa em 1917 – não sei em que fase dos acontecimentos que a seguiram – desejava ir à Rússia para ver os feitos com seus próprios olhos, porém o governo britânico não permitiu. Isto abarca quase tudo o que sabemos sobre seus movimentos, ainda que eu não pretenda rastrear todos os seus passos. Realizou sua última viagem para o exterior em setembro de 1922, quando um companheiro de Messina o guiou através das elevadas montanhas da Suíça seguindo as trilhas dos contrabandistas, e ali conheceu os anarquistas italianos que viviam em Bienna e os companheiros locais e internacionais de Saint-Imier, em uma conferência privada que foi realizada em comemoração ao Congresso de Saint-Imier de 1872, do qual ele era o único sobrevivente. Terminada a reunião, a polícia suíça, apoiando-se na sua ordem de expulsão de 1879, quis mantê-lo preso, porém justamente nesse momento ele sentiu um impulso de ir embora e voltou para a Itália57”.
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Outro aspecto da vida política de Malatesta que merece um estudo detalhado, porém ao qual irei me contentar em fazer apenas uma breve referência, é sua atitude frente aos policiais e a prisão. Na sua época o policial comum da Itália era muitas vezes um “pobre diabo” - como ele dizia – da região faminta do sul, menos interessado em proteger o Estado ou em satisfazer sua ambição pessoal de poder do que em garantir que ele e sua família poderiam fazer uma refeição completa por dia. Assim, Malatesta nunca perdeu a oportunidade de tentar “seduzir” seus captores mostrando a relação existente entre a luta anarquista e a luta pela vida, e há dúzias de magníficas anedotas que ilustram a exitosa técnica de Malatesta com os policiais e carcereiros58. Eu diria que os tempos mudaram, que a proporção de “pobres diabos” que realizam esses trabalhos diminuiu consideravelmente nos últimos quarenta anos, e que Malatesta, que era um pragmático, talvez adotaria uma tática totalmente distinta atualmente. Na sua juventude, como eu já disse anteriormente nessas Notas, ser detido e ir para a prisão fazia parte da aprendizagem dos jovens revolucionários: “as perseguições só conseguiam despertar nosso entusiasmo”. Porém também dizia que nesses tempos a perseguição policial era “um jogo em comparação com a que ocorreu mais tarde”. Parece claro que durante os dezesseis meses que passou no cárcere esperando que o julgassem por participar da tentativa abortada de insurreição em Benevento, em 1877 – que acabou com todos os envolvidos sendo absolvidos –59, Malatesta decidiu que poderia servir melhor seus ideais fora, e não dentro, da prisão, e subsequentemente, quando se inteirava de que suas atividades estavam a ponto de ser interrompidas pelas autoridades, escolhia geralmente o caminho do exílio a permanecer um longo tempo na cadeia aguardando julgamento. Alguns de seus mais vulgares e vociferantes inimigos políticos o acusou de covardia, de fugir quando deveria enfrentar as consequências60; em uma ocasião, no começo da década de 1920, o acusaram de covardia porque se refugiou em um portal durante uma troca de tiros entre a polícia e os manifestantes61. Malatesta, apesar de sua saída retórica perante o júri de seu julgamento em 1922, quando afirmou: “Ainda que eu seja um homem fiel a uma causa, não sou um herói, o espírito  é forte mas a carne é fraca, dizem os místicos, eu amo a vida, amo as pessoas que me amam...”62, jogava suas cartas com apenas uma finalidade: ser absolvido para recomeçar sua luta pela revolução, como única resposta à ameaça do fascismo. Se Malatesta e Borghi estivessem em liberdade para continuar sua propaganda durante esses dez meses vitais em que aguardavam julgamento, quem sabe como teria se desenvolvido a situação política. Poderia muito bem haver terminado da maneira que terminou, mas quem pode dizer que seu encarceramento promoveu a causa revolucionária? Malatesta não era nem um covarde nem um herói; era um homem valente e decidido, que empregou suas qualidades com inteligência. De fato, isto não o salvou de passar mais tempo na prisão do que tivesse desejado. Disse perante o júri de seu julgamento em 1922: “Ainda que eu tenha passado apenas sete meses na prisão sobre a totalidade das condenações que me infligiram – no entanto todas as outras foram anuladas por anistias ou suspensões –, as autoridades conseguiram, entretanto, me fazer viver, em períodos curtos ou longos, mais de dez anos da minha vida no cárcere”63. Isto significa aguardando julgamento, que muitas vezes terminava em absolvição. Para quem está habituado aos procedimento penais britânicos será difícil compreender como, por exemplo, Malatesta permaneceu na cadeia na Itália de maio a novembro de 1883 esperando que o julgassem, e depois, quando considerado culpado e sentenciado à três anos de prisão, foi liberado à espera do recurso da apelação, tempo durante o qual editou um jornal anarquista em Florença e também atendeu aos enfermos da epidemia de cólera em Nápoles. E então ele conseguiu escapar tão logo se inteirou de que sua apelação havia fracassado. Ao invés de passar três anos na prisão italiana, Malatesta os passou na Argentina (1885-89), onde contribuiu muito para construir o movimento anarquista e sindicalista no país – o único, além de Itália, Espanha e Rússia em circunstâncias excepcionais, que nos anos posteriores conseguiu publicar um jornal anarquista durante alguns anos65. Malatesta, o revolucionário maduro, assumiu riscos “calculados”, isto é, estava preparado para enfrentar o cárcere caso sentisse que as possibilidades revolucionárias justificassem o risco e que houvesse uma chance de cumprir sua tarefa antes que o prendessem. Assim, em 1897, depois da queda do governo Crispi, houveram possibilidades de fazer propaganda anarquista pública na Itália, ainda que sua sentença de três anos de 1883 pudesse ser aplicada até novembro daquele ano, mês em que prescreveria automaticamente, Malatesta pensou que valia a pena assumir o risco e voltou secretamente à Ancona em março, onde viveu num quarto e dali dirigiu o semanário anarquista L'Agitazione. Para evitar que a polícia italiana o capturasse, pois havia sido alertada de sua desaparição de Londres, teve que abster-se de toda atividade ou aparição pública nas reuniões de propaganda; o fato de que a polícia suspeitava que ele poderia estar em Ancona significou também que todos os seus contatos com companheiros locais, a maioria dos quais eram conhecidos pela polícia ou vigiados por ela, tiveram que se realizar com o máximo de prudência. Tendo em vista que não poderia se distrair, por força das circunstâncias, de suas funções como diretor do periódico para dedicar-se a assembleias e manifestações, Fabbri66 considera que L'Agitazione foi, “do ponto de vista histórico e teórico”, a publicação mais importante dirigida por Malatesta. (Lamentavelmente não pude ver sequer um exemplar deste jornal, ainda que muitos dos artigos de Malatesta fossem incluídos nos dois volumes de escritos selecionados publicados em Nápoles depois da guerra67.) Malatesta teria continuado vivendo clandestinamente mesmo depois de sua primeira sentença estar prescrita, porque temia que a polícia o prendesse com qualquer pretexto apenas para impedi-lo de realizar propaganda, que estava produzindo resultados, e que obviamente não era do agrado do governo italiano. Apesar de não haver cometido nenhuma indiscrição, a polícia chegou a conhecer seu esconderijo e o prendeu, porém foi posto em liberdade no mesmo dia. Isto aconteceu em novembro. Desse momento até o mês de janeiro Malatesta, livre para participar de atividades públicas, intensificou seu trabalho, porém tal como esperava as autoridades não o deixaram tranquilo por muito tempo. Em 18 de janeiro de 1898, durante uma manifestação pública ele e mais oito companheiros, incluindo o administrador do semanário, foram presos na rua e acusados de “conspiração”. Um dos aspectos interessantes deste julgamento foi que, enquanto nos anteriores a maioria dos anarquistas negavam as acusações fundamentando que se opunham ao próprio conceito de organização, Malatesta e seus amigos não apenas declararam que estavam organizados, como também reclamaram o direito dos anarquistas a se reunirem em uma organização formal. Isto deu origem a um período de agitação em toda Itália a favor da “liberdade de organização”, promovido pela Federação Socialista Anarquista de Roma e apoiado energicamente pelas colunas do L'Agitazione, que continuou sendo publicado apesar das prisões daqueles que haviam ocupado o jornal no lugar de Malatesta, entre eles Fabbri, que na ocasião tinha apenas 20 anos. Na época em que o julgamento estava sendo realizado, quatro meses depois, mais de 6.000 anarquistas em nome de muitos grupos e associações haviam assinado um manifesto público no qual declaravam sua crença política e afirmavam que eram membros de um “partido” e estavam com completo acordo com os acusados. Mais apoio chegou de todas as partes do mundo. Dessa maneira o julgamento, escreveu Fabbri, se converteu numa batalha pelos direitos públicos, além de ser, como foram muitos outros, um excelente meio de propaganda anarquista. Durou uma semana inteira, e ao final dela Malatesta foi condenado a sete meses de prisão, sete companheiros foram condenados a seis meses e um foi absolvido. Entretanto, o saldo foi vitorioso, porque desde então se reconhece o direito dos anarquistas a se organizarem, e ainda que isso não os tenha protegido de serem presos e acusados de atividades “subversivas”, as penas foram menos severas e as ordens de prisão menos arbitrárias. Ou foram igualmente? Um mês depois do julgamento de Malatesta aconteceram grandes motins populares em Milão, que foram reprimidos violentamente  e deixaram um saldo de vários mortos e feridos entre os manifestantes. L'Agitazione foi proibido e a maioria dos membros do corpo editorial, que ainda estavam em liberdade, foram presos. O Parlamento aprovou leis de emergência e reimplantou a prisão domiciliar (exílio em ilhas penais) em piores condições do que antes. Assim, quando acabou a sentença de Malatesta em agosto – e a de seus sete camaradas um mês antes –, no lugar de serem libertados acabaram na prisão e foram sentenciados a cinco anos de prisão domiciliar.
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Malatesta foi mandado à Ústica e logo decidiu que não passaria resignado cinco anos naquela ilha inóspita, então começou a planejar sua fuga. Como o governo suspeitava de suas intenções, transferiu Malatesta para a ilha de Lampedusa, de onde é muito difícil escapar. O que o governo não desconfiava era que o benevolente “governante” de Lampedusa, que ficou tão impressionado com Malatesta e os outros “políticos” que os deu mão livre “e fechou os olhos para não ver o que estavam fazendo”68. Malatesta traçou seus planos de fuga com cuidado e sem pressa. Não apenas encontrou um modo de estabelecer contato com o continente mas também, segundo narra Fabbri, inclusive o socialista Oddino Morgari, que visitou a ilha na qualidade de deputado parlamentar, estava informado de seus planos. Na noite de 9 de maio de 1899 Malatesta, Vivoli, que era um camarada de Florença, e um preso comum nadaram até um pequeno barco ancorado um pouco longe – a bordo do qual estava um socialista siciliano chamado Lovetere –, se aproximaram e navegaram até Malta. Sua fuga foi descoberta no dia seguinte devido à inesperada visita de um inspetor do governo enviado para investigar rumores que circulavam em Roma sobre os planos de escapar de Malatesta. Mas já era tarde demais. Malatesta chegou em Malta e permaneceu ali aguardando um barco que o levaria à Inglaterra. Poucos dias depois estava de volta à casa da família Defendi, em Islington. Porém em poucas semanas já viajava até Paterson, Nova Jersey, convidado por companheiros italianos que desejavam que ele assumisse seu cargo de direção do periódico La Questione Sociale. Entretanto, permaneceu nos Estados Unidos apenas por poucos meses, tempo durante o qual, além de dirigir o jornal, pronunciou discursos em muitas assembleias públicas, em italiano e espanhol, por todo o continente. Antes de voltar à Londres passou dez dias em Cuba, onde havia sido convidado a pronunciar conferências em algumas reuniões. Apesar das dificuldades causadas pela polícia, que inicialmente proibiu as assembleias e depois as permitiu desde que não utilizasse a palavra anarquismo, Malatesta conseguiu falar em quatro reuniões, mas depois decidiu que não valia a pena seguir com a turnê e voltou à Nova York em março. Em abril já estava em Londres novamente. Fabbri afirma que “foram razões pessoais as que determinaram sua decisão de voltar para Londres, porém não dá nenhum indício se se tratavam de motivos políticos ou privados. Malatesta não tinha obviamente nenhuma razão política para voltar à Londres, porém pode muito bem tê-las tido para ficar longe dos Estados Unidos. Nettlau diz que o apoio de Malatesta às formas de organização tropeçaram sempre na forte oposição por parte dos anarquistas individualistas”69. O convite para dirigir o jornal anarquista na cidade de Paterson coincidiu com o anúncio de que o diretor Giuseppe Ciancabilla estava começando outra publicação, Aurora, com apoio de “todos” os companheiros. Ainda que eu, e os leitores destas Notas, possamos considerar que não tem nenhuma importância estabelecer agora os detalhes dos fatos referentes às atividades de Malatesta durante esses meses, me referi a elas, em primeiro lugar, para ilustrar a atitude prática de Malatesta no que diz respeito ao valor propagandístico do encarceramento. Sua prisão, julgamento e condenação à prisão em 1889 foi, na sua opinião, uma boa forma de propaganda, a culminação de longos meses de atividade clandestina como diretor do L'Agitazione. A perspectiva de passar cinco anos nas ilhas penais, não. Daí veio sua determinação para escapar a todo custo. Talvez esses cinco anos, com exceção dos meses que passou nas Américas, não foram tão compensadores como ele pudesse ter desejado, porém eu sugiro que sua contribuição foi maior, tanto no que diz respeito a ele próprio como ao movimento anarquista, do que se houvesse passado os cinco anos na prisão domiciliar. A outra razão para mencionar os meses passados nos Estados Unidos é para estabelecer os fatos referentes a um incidente em que Malatesta se configurou enquanto figura central. Em uma assembleia na qual ele estava discursando em West Hoboken (atualmente Union City, Nova Jersey), ocorreu uma calorosa discussão na qual um dos membros do auditório o interrompeu para contradizê-lo, e quando Malatesta “o refutou com energia”, aquele se ofuscou de tal maneira que sacou um revólver e disparou contra o orador ferindo-o na perna. Foi desarmado por um homem que era “dos mais tolerantes e pertencia ao grupo de Malatesta”70, e que alguns meses mais tarde voltaria à Itália para assassinar o rei Humberto: Gaetano Bresci. Circulou o falso rumor que o agressor de Malatesta era outro anarquista, e é fácil entender com que prazer repetiram esse saboroso escândalo político os detratores dos anarquistas em todas as ocasiões possíveis. Uns trinta anos depois o atentado foi revivido com a publicação de Rebeldes e Renegados de Max Nomad, e os anarquistas dos Estados Unidos, através de seus periódicos tivessem que repetir os fatos verdadeiros, porém nunca chegaram a destruir por completo as falsidades contidas no livro de Nomad. Na verdade, trinta anos depois de Nomad, George Woodcock, que deveria estar inteirado para não confiar no material que apresenta Nomad, repete essa mentira na sua História do Anarquismo e menciona Ciancabilla como suposto agressor de Malatesta. O incidente do atentado é em si mesmo um episódio menor dentro de uma longa e plena vida, e como tal o trataremos nestas Notas. Porém desde o ponto de vista da propaganda anarquista, a versão de Nomad-Woodcock tem provocado grandes danos até agora, e por essa razão apresentamos como Apêndice os fatos referentes ao incidente71, porque espero que os historiadores ingleses que queiram difundir Malatesta em sua obra prima e se encontram impedidos de consultar as fontes originais por problemas de idioma, leiam ao menos essa obra em vez da miscelânea de meias verdades e de puras invenções de Nomad.
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No começo destas Notas citei uma passagem da História de Woodcock, na qual este descreve Malatesta e outros jovens internacionalistas como “o equivalente italiano aos nobres russos de consciência culpada” que na mesma década sentiram a constante urgência de ter contato com o povo, e apresentei provas para tratar de mostrar que essa analogia não era correta. Volto agora sobre ela porque o caráter de Malatesta é tão distinto dessa generalização, e seu enfoque nos problemas sociais tão diferente, que só mediante uma apreciação plena de sua personalidade podemos colocar seus sessenta anos de militância numa perspectiva adequada. Toda evidência marca o fato de que Malatesta não teve uma juventude protegida, ainda que esteja claro que sua família dispunha dos meios necessários para permitir que ele prosseguisse os estudos sem ter que se preocupar com o sustento cotidiano. Sua entrada na política foi típica de um adolescente normal e impulsivo, e tal como muitos jovens deste país se viram arrastados a algum tipo de compromisso político com o entusiasmo que rodeava a primeira marcha de Aldermaston, também muitos jovens contemporâneos de Malatesta devem ter sentido o mesmo como resultado das ousadas façanhas de Garibaldi e de seus “libertadores”. (E segundo Nettlau é possível que Malatesta tivesse visto em ação, ainda muito jovem, os libertadores quando Santa Maria e Cápua foram centros de amargas lutas.) Porém o que é seguramente significativo no caso de Malatesta é que em três ou quatro anos chegou a “compreender” os garibaldinos e mazzinianos e a simpatizar com eles, e a “descobrir” também Bakunin e a Internacional. Seu desenvolvimento intelectual aconteceu no curso das atividades políticas de todos os tipos, que permitiram a ele experimentar desde muito cedo a ação das autoridades e do governo. Em contraste, Bakunin e Kropotkin entraram na luta depois de uma preparação intelectual relativamente longa. Kropotkin estava na casa dos 30 anos quando fez sua “primeira viagem ao exterior” e começou a ler toda a “literatura socialista” que caía em suas mãos. Escreveu em suas Memórias: “Passei dias e noites lendo e senti uma profunda impressão que nada podia apagar… Quando mais eu lia tanto melhor eu enxergava que estava diante de mim um novo mundo que eu desconhecia, totalmente ignorado pelos eruditos formuladores de teorias sociológicas, um mundo que só pude chegar a conhecer vivendo na Associação de Trabalhadores e me reunindo com eles na vida cotidiana. Por consequência decidi passar alguns meses vivendo essa vida”72 No caso de Bakunin foi em Dresden em 1842, aos 28 anos, onde segundo Carr “se sentiu pronto para proclamar ao mundo sua conversão à causa da revolução”. “O inverno de 1841-42, que passou sozinho em Berlim, parece ter sido o período decisivo da conversão de Bakunin. Devorou com avidez uma massa de opúsculos e dissertações com as quais os jovens hegelianos estavam inundando a Alemanha sob os narizes dos próprios censores… Na época em que se estabeleceu novamente em Dresden, no verão de 1842, Bakunin era um jovem hegeliano feito e direito. Ruge descobriu que havia 'superado todos os velhos asnos de Berlim'”73. No caso de Malatesta, “ir até o povo” implicava uma identificação total com os trabalhadores, ser um deles… E isto foi o que ele fez desde muito cedo na sua vida. Tão logo quanto recebeu sua herança entregou as propriedades a seus arrendatários, e o dinheiro que recebeu por elas foi usado para propaganda. Por volta dos 20 anos aprendeu o ofício de mecânico na oficina de um amigo e internacionalista chamado Aginore Natta, de Florença. Durante toda sua vida viveu como mecânico eletricista, exceto quando a situação política exigia e o movimento anarquista podia se permitir a mantê-lo enquanto ele se dedicava plenamente à luta política. Tal como se opôs aos funcionários e organizadores permanentes de sindicatos, também manifestou sua oposição contra os revolucionários que eram “mantidos” pelo movimento. Não se tratava apenas de uma questão de princípio, isto é, de uma regra baseada na experiência acerca dos efeitos danosos que surgem inevitavelmente da dedicação exclusiva à tarefa burocrática, mas também de uma expressão de seu espírito de independência, que não se sentia livre a menos que fosse financeiramente independente do movimento anarquista. Este é o motivo pelo qual é errôneo representar Malatesta como agitador e revolucionário profissional, porque com isso se prejudica tanto ele como o movimento anarquista, porque se sua vida é tão importante para o movimento anarquista como são suas ideias, isto se deve justamente por não ter sido um revolucionário profissional, nem “um santo”, nem o “profeta”, nem o “homem do destino”. Malatesta foi sempre um companheiro entre outros companheiros, que buscava sem cessar, promover seu ponto de vista, porém sem tratar nunca de dominar um argumento com o mero peso de sua personalidade. Neste sentido é significativo que enquanto orador nunca utilizou truques de oratória, tal como em seus escritos se preocupou sempre de convencer os leitores mediante a clareza, a lógica e o puro senso comum de seus argumentos. Devido a esta abordagem, e não apesar dela, todos os seus escritos, e estou seguro que todos os seus discursos também, estão plenos do real calor humano porque se baseiam na compreensão dos problemas – assim como nas dificuldades que implica superá-los – que enfrentam todos os que estão desejosos e ansiosos para fazer algo que mude radicalmente a sociedade. Malatesta estava plenamente consciente dos perigos, assim como das vantagens, que implicava a “iminência” ou a “notoriedade” de que eles e outros poucos gozavam no movimento anarquista internacional e no mundo da política de esquerda. É provavelmente correto dizer que ele exagerou ao subestimar seu valor no que diz respeito ao movimento anarquista, porém sabia explorar sua posição dentro do movimento operário quando pensava que era imperativo reunir todos os movimentos e partidos da assim chamada esquerda revolucionária a aceitar uma Entente sobre problemas específicos. Malatesta estava sempre “politicamente muito consciente” sem que houvesse chegado nunca, entretanto, a transformar-se em um político. Explorava todas as perspectivas políticas, como alguns de seus inimigos políticos iriam recordar anos mais tarde, sem acrescentar no entanto a importante observação de que Malatesta, o anarquista, saía ileso de suas excursões “pelas trilhas do inferno político”. Seu anarquismo não estava na sua cabeça e sim no seu coração, ou, para citar suas palavras: “Este sentimento é o amor do gênero humano e o fato de participar dos sofrimentos dos demais...”. Porém para conseguir seus objetivos sempre se guiava pela sua “cabeça”, isto é, pela observação e compreensão dos problemas humanos e materiais que deveria superar.
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Num trabalho recente muito comentado, Anarquistas e Anarquismo, o autor74, da torre de marfim do seu claustro universitário, pronuncia a sentença sobre “uma vida defraudada”, quando manifesta que com a morte de Malatesta (1932) “o Estado italiano era… um adversário mais forte e formidável que nunca”. No entanto a vida de Malatesta foi plena e rica, e satisfatória; suas ideias, todavia, são inspiradoras e estão inspiradas pelo tipo de senso comum e humanidade que milhões de nossos congêneres ainda tem que descobrir. E não há alguma lição para aprender sobre o que importa em nossas vidas, enquanto indivíduos e como civilização, quando mais de trinta anos depois de sua morte apresentamos quase pela primeira vez ao público de língua inglesa, um Malatesta como homem e pelas suas ideias, enquanto ao mesmo tempo o mundo está tentando desesperadamente esquecer que existiu alguma vez Mussolini e os outros sórdidos atores dessa “época de desgraças”? Pensamento que sem dúvida os historiadores que estão ocupados agora escrevendo obituários sobre o anarquismo, deveriam muito bem avaliar cuidadosamente.
Notas
1 Pensiero e Volontà, 19 de julho de 1926.
2 Max Nettlau, Errico Malatesta – La vida de un anarquista, Buenos Aires, 1923.
3 Armando Borghi, Errico Malatesta, Milão, 1947.
4 Errico Malatesta, Scritti Scelti, vol. 2, Nápoles, 1954.
5 George Woodcock, Anarchism – A History of Libertarian Ideas and Movements, Londres, 1963.
6 Max Nettlau, op. cit.
7 Max Nettlau, op. cit.
8 Luigi Fabbri, Malatesta, Buenos Aires, 1945.
9 Max Nettlau, op. cit.
10  Armando Borghi, Mezzo Secolo di Anarchia, Nápoles, 1954.
11 Pensiero e Volontà, 19 de julho de 1926.
12 Pensiero e Volontà, Roma, 16 de setembro de 1925.
13 Max Nettlau, Bakunin e l'Internazionale in Italia dal 1864 al 1872, Genebra, 1928, prefácio de Malatesta
14 Luigi Fabbri, op. cit.
15 Angiolini citado por Nettlau, Errico Malatesta – El Hombre, el Revolucionario, el Anarquista, Barcelona, 1933.
16 Luigi Fabbri, op. cit.
17 Angiolini citado por Nettlau, Errico Malatesta – La vida de un anarquista, Buenos Aires, 1923.
18 Max Nettlau, op. cit.
19 Questione Sociale, Florença, 1884, citado por Nettlau, op. cit.
20 Max Nettlau, op. cit.
21 Max Nettlau, op. cit.
22 Malatesta, prefácio de Nettlau, op. cit.
23 Questione Sociale, citado por Nettlau, Errico Malatesta.
24 Max Nettlau, op. cit.
25 Max Nettlau, op. cit.
26 Malatesta, prefácio de Nettlau, op. cit.
27 Umanità Nova, Roma, 11 de março de 1922.
28 Pensiero e Volontà, Roma, 19 de julho de 1926.
29 Omitida no original em inglês.
30 Malatesta, prefácio de Nettlau, op. cit.
31 Luigi Fabbri, op. cit.
32 Errico Malatesta, Scritti, vol. 3, Genebra, 1936.
33 Umanità Nova, 24 de agosto de 1921.
34 Op. cit.
35 James Joll, The Anarchists, Londres, 1964.
36 Omitida na versão argentina.
37 Errico Malatesta, Scritti Scelti, Nápoles, 1954.
38 Op. cit.
39 Armando Borghi, Errico Malatesta, Milão, 1947.
40 Luigi Fabbri, op. cit.
41 Freedom, Londres, julho de 1914.
42 James Joll, op. cit., ver Apêndice I.
43 Freedom, abril de 1916, ver Apêndice II.
44 Freedom, dezembro de 1914.
45 L'Adunata dei Refrattati, Newark, N. J., 3, 10, 17 e 24 de semtembro de 1932.
46 Ver Ugo Fedeli, Errico Malatesta – Bibliografia, Nápoles, 1951.
47 Luigi Fabbri, Malatesta l'Uomo e il Pensiero, Nápoles, 1951.
48 Trento Tagliaferri, Errico Malatesta, Armando Borghi e Cia diante o júri de Milão, Milão, sem data, 1921?
49 Il Libero Accordo, Roma, 1920-1926; Fede!, Roma, 1923-1926.
50 Omitida no original em inglês.
51 Max Nettlau, op. cit., Barcelona, 1933.
52 Max Nettlau, em Freedom Bulletin, dezembro de 1932.
53 Ver Apêndice IV.
54 Max Nettlau, op. cit., Genebra, 1928.
55 A propósito da Plataforma, em Risveglio, Genebra, 14 de dezembro de 1929.
56 Freedom Bulletin, dezembro de 1932.
57 Omitida no original em inglês.
58 Ver Borghi, Fabbri, Nettlau, op. cit.
59 Ver Nettlau, Errico Malatesta Vita e Pensiera, Nova York, 1921.
60 Há muito pouco tempo um sindicalista espanhol, já maduro, me falou de sua admiração pelas ideias de Malatesta, porém repetiu como um fato que este sempre tinha conseguido escapar quando as coisas ficavam “muito quentes”. Ficou surpreso quando disse que Malatesta havia passado cerca de dez anos em diversas prisões do mundo!
61 Umanità Nova.
62 Trento Tagliaferri, op. cit.
63 Op. cit.
64 Omitida no original em inglês.
65 La Protesta apareceu diariamente por 25 anos. Ver Rocker, Anarcossindicalismo, Londres, 1938.
66 Luigi Fabbri, op. cit.
67 Errico Malatesta, Scritti Scelti, vol. 1, Nápoles, 1947, vol. 2, Nápoles, 1954.
68 Luigi Fabbri, op. cit.
69 Max Nettlau, op. cit.
70 Armando Borghi, op. cit.
71 Ver Apêndice III.
72 Kropotkin, Memórias de um Revolucionário, Londres, 1899, vol. II, págs. 59-60.
73 E. H. Carr, Michael Bakunin, Londres, 1937.
74 James Joll, op. cit.

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