Unidade da Esquerda ou Frente Classista?

Escrito por Warren McGregor e publicado originalmente na plataforma Anarkismo.net em 21 de Julho de 2018.

Disponível em http://www.anarkismo.net/article/31076


Um apelo à unidade da esquerda socialista é amplamente ouvido em toda África do Sul, mas ele é frequentemente interpretado como um chamado à unidade da práxis (unidade no programa teórico e na ação). Isso muitas vezes é enquadrado como a transcendência de velhas divisões (estas vistas como antiquadas, sectárias ou descartadas como dogmáticas), e outras vezes como unidade a fim de agir (retoricamente posta como o oposto da teoria de gabinete).

O que nós, anarquistas revolucionários, pensamos? Pensamos que essa abordagem é justa em suas intenções, que faz perguntas importantes e visa abordar a crise da esquerda e dos movimentos da classe trabalhadora.

Entretanto, a ideia de que as divisões são antiquadas, sectárias ou dogmáticas é incorreta. A “esquerda” — tomada aqui como sinônimo de socialismo, não de qual lado do parlamento você se senta — é um espectro em que repousa uma ampla variedade de ideologias e tradições anti ou não-capitalistas, da social democracia mais reformista, de um lado, ao conjunto de anarquistas e marxistas revolucionários, do outro.

Não é a existência dessas abordagens diferentes que enfraquece a esquerda. Um apelo à unidade da práxis não compreende (ou ignora) o valor da diferença e do debate progressivo para o desenvolvimento teórico e a inovação estratégica. O desenvolvimento e a inovação fortalecem a esquerda e são o melhor antídoto contra o dogmatismo — desde que envolva o debate e o desacordo honesto e aberto (mas respeitoso e construtivo). Em outras palavras, isso contribui para a transformação social.

Esse processo requer um engajamento real e, portanto, também requer evitar uma política de rotular oponentes de modo depreciativo ou com caricaturas com o objetivo de dispensá-los, ao invés de engajá-los. Dispensar ideologias e experiências inteiras por rotulá-las dogmáticas, sectárias ou desatualizadas (ou esquerdistas ou reacionárias etc.) é, por si só, dogmático.

O termo “esquerda”, e o termo socialismo, não são e não devem ser reduzidos a qualquer uma dessas ideologias, e em particular, não devem ser reduzidos ao marxismo.

Se unidade de esquerda significa uma verdadeira unidade na práxis, isso deveria significar uma síntese. No entanto, uma síntese não é verdadeiramente possível, dado o quanto as tradições de esquerda são radicalmente diferentes. Ou isso criará alguma coisa incoerente ou extremamente vaga (como poderíamos, por exemplo, misturar realmente o vanguardismo leninista com o contra-poder anarcossindicalista?) ou será unidade apenas no nome, em que uma visão pré-existente é imposta.

No primeiro caso, não fará nada para a esquerda avançar, mas removerá a clareza. No último, envolveria prescrever, um tanto arrogantemente, um abordagem teórica específica, enquanto as outras são rotuladas como antiquadas, dogmáticas, sectárias etc.

E esse tipo de caso, infelizmente, vem se tornando uma prática comum em vários contextos, inclusive em África do Sul. Geralmente, significa dispensar outras abordagens, depois prescrever um programa que é basicamente um tipo de leninismo ou uma versão de esquerda da social democracia, frequentemente sob bandeiras como “socialismo do século XXI”, “socialismo democrático” ou renovação socialista.

Falhas desastrosas do passado são ignoradas, justificadas ou apresentadas da melhor forma possível. Não se explica, por exemplo, como o Leninismo não terminará (mais uma vez) numa ditadura, mesmo depois de 30 delas terem existido e nenhuma ter sido o exemplo de algo como uma democracia operária. Não se explica, após cada governo Keynesiano ter falhado diante da globalização do capitalismo, como a social democracia irá subitamente funcionar, sob o capitalismo globalizado.

Muito do que é apresentado como novo ou inovador é como vinho velho colocado em garrafas novas. As ideias são colocadas em novas garrafas. Por exemplo, a ideia de construir uma economia solidária baseada em cooperativas para por um fim, ou sair do capitalismo, é muito velha, de P.-J. Proudhon na década de 1840; a ideia de fazendas estatais administradas por trabalhadores é de Louis Blanc, no período já mencionado. As duas abordagens falharam na criação de algo capaz de acabar com o capitalismo nestes 150 anos e não está claro porque devemos tentá-las uma vez mais.

Uma ideia diferente de unidade da esquerda é a que chama o Partido Socialista Revolucionário dos Trabalhadores. Mas essa ideia está enraizada na tradição Marxista. A ideia ignora debates muito sérios, em específico sobre o poder do Estado, o papel dos sindicatos, eleitoralismo, democracia representativa vs participativa, vanguardismo etc. Não se preocupa que uma abordagem baseada na captura de estados individuais possa alcançar qualquer coisa sob a globalização neoliberal.

Enquanto ambos Marxistas, social democratas e nacionalistas estão de acordo com um projeto de partidos políticos capturando o poder do Estado, o anarquismo surge como um movimento ideológico socialista da classe trabalhadora que rejeita exatamente essa abordagem. É uma crítica do programa político Marxista padrão, mas amarrado a uma distintiva análise anarquista do próprio Estado como um lugar fundamental do governo das classes minoritárias.

Agora, pode haver muitas ideias em comum nos ramos Marxista e anarquista da família socialista, tais como a necessidade da luta de massas da classe trabalhadora, anticapitalismo etc. Mas há diferenças filosóficas profundas.

Elas incluem, mas não estão limitadas, por um lado, à teoria, como a análise anarquista muito diferente do que o Estado é e como ele funciona, o que é classe, se o capitalismo pode ser progressivo etc. Essa abordagem leva à visão anarquista de que o Estado e os partidos que visam Seu poder não podem ser usados para criar uma ordem social livre, não-capitalista. Por outro lado, no que diz respeito à aplicação, ver também a insistência veemente do anarquismo na independência democrática e coletiva e na liberdade individual dentro de uma sociedade cooperativa comunitária; contra a abordagem centrada no Estado e no partido que dominou o Marxismo. Uma abordagem, localizada em seu próprio cânone histórico, que os anarquistas argumentam, entre outras reivindicações atribuídas a ela, dá ao Marxismo sua natureza fundamentalmente autoritária e antidemocrática.

Essas diferenças não são uma questão de dogmatismo ou sectarismo. Elas também não serão apagadas em nome da “unidade de esquerda”, que efetivamente coloca a esquerda sul-africana na trilha estatista.

Óbvio que há e haverá muitas áreas de cooperação e campanhas – ou haveria realmente alguma divisão séria sobre, por exemplo, a oposição à violência de gênero, a mudança climática, a organizações por local de trabalho, a luta por reforma agrária?

E haverá sempre, no entanto, divisões sobre os modos de perseguir esses objetivos, sobre a visão de longo prazo e assim por diante, de acordo com os ditames das diferenças ideológicas.

Silenciar o debate em nome da unidade pode até ser algo bem intencionado, mas acaba com debates úteis e espaços democráticos. Além disso, prefigura uma política que enxerga a diferença como perigosa. Historicamente, quando levados ao extremo, vemos Marxistas no poder do Estado permitindo a prisão, o exílio ou a execução da oposição de esquerda e governos social-democratas esmagando revoluções.

O que é de maior importância é a unidade através da organização e da luta da classe trabalhadora. Significa também perceber a inevitabilidade do conflito, usando-o como meio de desenvolvimento institucional e teórico da revolução. Certamente, um programa de ação é necessário se essas, nossas organizações buscam a transformação social, e se nós queremos criar unidade através dos muitos locais de luta e organização da classe trabalhadora.

No entanto, esse programa, essa filosofia, esses conceitos-chave e ideias para mudança e reconstrução devem ser testados e reformulados na luta. E para nós, luta não significa só a luta por melhores condições cotidianas de trabalho e de vida, maiores liberdades políticas e assim por diante. Também envolve o constante e consistente desenvolvimento de ideias e práticas, o que requer o engajamento de ideias num amplo, honesto, crítico e autorreflexivo caminho, contribuindo para o desenvolvimento de instrumentos para a luta de classes socialista e revolucionária: a organização dos trabalhadores (como sindicatos e organizações comunitárias) para construir o poder da reconstrução socioeconômica completa (a revolução).

Essa luta interna de desenvolvimento nos movimentos sociais deve ser travada como uma batalha de ideias entre, sim, conjuntos ideológicos que concorrem por influência nele, mas não pela sua imposição ao movimento de massas. Afirmar que sua teoria não apenas compreende o caminho da história, mas a eventualidade do destino e, portanto, sua própria pureza teórica, é pura ilusão.

Nós podemos prever com segurança padrões particulares baseados em precedentes históricos, mas afirmações e teleologias tão definidas não são científicas, nem críticas e efetivamente impõe uma reivindicação e uma estrutura de liderança. Essas formas de liderança desenvolvem e afirmam o controle inamovível sobre os movimentos, sugam sua vida criativa e são fundamentalmente autoritários, não importa as características individuais iniciais daqueles que as fazem.

É profundamente enganoso apresentar a teoria como uma distração inútil da luta, na medida em que elas se moldam e se constroem mutuamente. Abordagens antiteóricas interpretam a diferença como um problema de dogma ou sectarismo – e, portanto, não podem ver que as diferenças são úteis – ou apresentam a teoria como uma indulgência preguiçosa do “gabinete” que nos impede de “fazer” as coisas. Mas a teoria é tanto um processo quanto um instrumento da ação humana, e a teoria socialista não pode, no entanto, estar afastada da ação socialista progressista.

Assim, qualquer apela à unidade da esquerda, não importa o quão bem intencionado esteja, falha em demonstrar o fato de que existem muitas ideologias de esquerda e perde o ponto, no geral, sobre aquilo que deveria orientar a revolução socialista que muitos de nós estamos trabalhando para acontecer.

O que devemos pensar, ao invés disso, é a construção e o fortalecimento de uma frente da classe trabalhadora, baseada em movimentos comunitários, organizações de esquerda, cooperativas etc., que possam cooperar em campanhas e demandas específicas. Esses movimentos devem ser internamente democráticos, politicamente plurais, nos quais as organizações de esquerda possam cooperar umas com as outras – e francamente, o que é muito mais importante – engajar movimentos de massas. Movimentos em que as diferentes perspectivas são encorajadas, desenvolvidas e testadas. Nenhuma organização abre mão de independência política – que é o direito de ter, expressar e fazer campanhas em defesa de seus pontos de vista – em nome de unidade, mas todas podem cooperar em discussões específicas.

A ideia não é abrir mão das diferenças, e criar um partido para a classe trabalhadora, mas unificar pequenas e grandes organizações de classe; a ideia não é fingir que as diferenças não existam, ou substituir o movimento da classe trabalhadora por uma única ideologia; a ideia é que a diferença e o debate são essenciais, e não antiquados, dogmáticos, sem sentido. A única coisa que destroem é a a autoridade centralizada, a ditadura.

Isso não significa que uma conferência ou um simpósio de esquerda seja em si inútil, mas tentativas anteriores quase certamente acabaram em diferentes organizações e indivíduos afirmando suas posições, sem uma discussão útil de convergência ou divergência. Mais importante é construir debates e discussões dentro de movimentos mais amplos da classe trabalhadora, além da esquerda, onde haja o envolvimento da classe com diferentes ideias, o teste da prática, usando uma série de workshops, encontros, lugares, mídias e campanhas. Nesse tipo de situação existe uma batalha de ideias e uma batalha pela liderança das ideias, com toda a certeza, ao mesmo tempo em que se protege contra a manipulação dos processos, contra o fechamento de debates por rótulos ou a política demagógica do “grande homem”.

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