Unidade da Esquerda ou Frente Classista?
Escrito por Warren McGregor e publicado originalmente na plataforma Anarkismo.net em 21 de Julho de 2018.
Disponível em http://www.anarkismo.net/article/31076
Não é a existência dessas abordagens diferentes que enfraquece a esquerda. Um apelo à unidade da práxis não compreende (ou ignora) o valor da diferença e do debate progressivo para o desenvolvimento teórico e a inovação estratégica. O desenvolvimento e a inovação fortalecem a esquerda e são o melhor antídoto contra o dogmatismo — desde que envolva o debate e o desacordo honesto e aberto (mas respeitoso e construtivo). Em outras palavras, isso contribui para a transformação social.
É profundamente enganoso apresentar a teoria como uma distração inútil da luta, na medida em que elas se moldam e se constroem mutuamente. Abordagens antiteóricas interpretam a diferença como um problema de dogma ou sectarismo – e, portanto, não podem ver que as diferenças são úteis – ou apresentam a teoria como uma indulgência preguiçosa do “gabinete” que nos impede de “fazer” as coisas. Mas a teoria é tanto um processo quanto um instrumento da ação humana, e a teoria socialista não pode, no entanto, estar afastada da ação socialista progressista.
Assim, qualquer apela à unidade da esquerda, não importa o quão bem intencionado esteja, falha em demonstrar o fato de que existem muitas ideologias de esquerda e perde o ponto, no geral, sobre aquilo que deveria orientar a revolução socialista que muitos de nós estamos trabalhando para acontecer.
O que devemos pensar, ao invés disso, é a construção e o fortalecimento de uma frente da classe trabalhadora, baseada em movimentos comunitários, organizações de esquerda, cooperativas etc., que possam cooperar em campanhas e demandas específicas. Esses movimentos devem ser internamente democráticos, politicamente plurais, nos quais as organizações de esquerda possam cooperar umas com as outras – e francamente, o que é muito mais importante – engajar movimentos de massas. Movimentos em que as diferentes perspectivas são encorajadas, desenvolvidas e testadas. Nenhuma organização abre mão de independência política – que é o direito de ter, expressar e fazer campanhas em defesa de seus pontos de vista – em nome de unidade, mas todas podem cooperar em discussões específicas.
A ideia não é abrir mão das diferenças, e criar um partido para a classe trabalhadora, mas unificar pequenas e grandes organizações de classe; a ideia não é fingir que as diferenças não existam, ou substituir o movimento da classe trabalhadora por uma única ideologia; a ideia é que a diferença e o debate são essenciais, e não antiquados, dogmáticos, sem sentido. A única coisa que destroem é a a autoridade centralizada, a ditadura.
Isso não significa que uma conferência ou um simpósio de esquerda seja em si inútil, mas tentativas anteriores quase certamente acabaram em diferentes organizações e indivíduos afirmando suas posições, sem uma discussão útil de convergência ou divergência. Mais importante é construir debates e discussões dentro de movimentos mais amplos da classe trabalhadora, além da esquerda, onde haja o envolvimento da classe com diferentes ideias, o teste da prática, usando uma série de workshops, encontros, lugares, mídias e campanhas. Nesse tipo de situação existe uma batalha de ideias e uma batalha pela liderança das ideias, com toda a certeza, ao mesmo tempo em que se protege contra a manipulação dos processos, contra o fechamento de debates por rótulos ou a política demagógica do “grande homem”.
Disponível em http://www.anarkismo.net/article/31076
Um apelo à unidade da
esquerda socialista é amplamente ouvido em toda África do Sul, mas
ele é frequentemente interpretado como um chamado à unidade da
práxis (unidade no programa teórico e na ação). Isso muitas vezes
é enquadrado como a transcendência de velhas divisões (estas
vistas como antiquadas, sectárias ou descartadas como dogmáticas),
e outras vezes como unidade a fim de agir (retoricamente posta como o
oposto da teoria de gabinete).
O que nós, anarquistas revolucionários, pensamos? Pensamos que essa abordagem é justa em suas intenções, que faz perguntas importantes e visa abordar a crise da esquerda e dos movimentos da classe trabalhadora.
Entretanto, a ideia de que as divisões são antiquadas, sectárias ou dogmáticas é incorreta. A “esquerda” — tomada aqui como sinônimo de socialismo, não de qual lado do parlamento você se senta — é um espectro em que repousa uma ampla variedade de ideologias e tradições anti ou não-capitalistas, da social democracia mais reformista, de um lado, ao conjunto de anarquistas e marxistas revolucionários, do outro.
O que nós, anarquistas revolucionários, pensamos? Pensamos que essa abordagem é justa em suas intenções, que faz perguntas importantes e visa abordar a crise da esquerda e dos movimentos da classe trabalhadora.
Entretanto, a ideia de que as divisões são antiquadas, sectárias ou dogmáticas é incorreta. A “esquerda” — tomada aqui como sinônimo de socialismo, não de qual lado do parlamento você se senta — é um espectro em que repousa uma ampla variedade de ideologias e tradições anti ou não-capitalistas, da social democracia mais reformista, de um lado, ao conjunto de anarquistas e marxistas revolucionários, do outro.
Não é a existência dessas abordagens diferentes que enfraquece a esquerda. Um apelo à unidade da práxis não compreende (ou ignora) o valor da diferença e do debate progressivo para o desenvolvimento teórico e a inovação estratégica. O desenvolvimento e a inovação fortalecem a esquerda e são o melhor antídoto contra o dogmatismo — desde que envolva o debate e o desacordo honesto e aberto (mas respeitoso e construtivo). Em outras palavras, isso contribui para a transformação social.
Esse processo requer um
engajamento real e, portanto, também requer evitar uma política de
rotular oponentes de modo depreciativo ou com caricaturas com o
objetivo de dispensá-los, ao invés de engajá-los. Dispensar
ideologias e experiências inteiras por rotulá-las dogmáticas,
sectárias ou desatualizadas (ou esquerdistas ou reacionárias etc.)
é, por si só, dogmático.
O termo “esquerda”,
e o termo socialismo, não são e não devem ser reduzidos a qualquer
uma dessas ideologias, e em particular, não devem ser reduzidos ao
marxismo.
Se unidade de esquerda
significa uma verdadeira unidade na práxis, isso deveria significar
uma síntese. No entanto, uma síntese não é verdadeiramente
possível, dado o quanto as tradições de esquerda são radicalmente
diferentes. Ou isso criará alguma coisa incoerente ou extremamente
vaga (como poderíamos, por exemplo, misturar realmente o
vanguardismo leninista com o contra-poder anarcossindicalista?) ou
será unidade apenas no nome, em que uma visão pré-existente é
imposta.
No primeiro caso, não
fará nada para a esquerda avançar, mas removerá a clareza. No
último, envolveria prescrever, um tanto arrogantemente, um abordagem
teórica específica, enquanto as outras são rotuladas como
antiquadas, dogmáticas, sectárias etc.
E esse tipo de caso,
infelizmente, vem se tornando uma prática comum em vários
contextos, inclusive em África do Sul. Geralmente, significa
dispensar outras abordagens, depois prescrever um programa que é
basicamente um tipo de leninismo ou uma versão de esquerda da social
democracia, frequentemente sob bandeiras como “socialismo do século
XXI”, “socialismo democrático” ou renovação socialista.
Falhas desastrosas do
passado são ignoradas, justificadas ou apresentadas da melhor forma
possível. Não se explica, por exemplo, como o Leninismo não
terminará (mais uma vez) numa ditadura, mesmo depois de 30 delas
terem existido e nenhuma ter sido o exemplo de algo como uma
democracia operária. Não se explica, após cada governo Keynesiano
ter falhado diante da globalização do capitalismo, como a social
democracia irá subitamente funcionar, sob o capitalismo globalizado.
Muito do que é
apresentado como novo ou inovador é como vinho velho colocado em
garrafas novas. As ideias são colocadas em novas garrafas. Por
exemplo, a ideia de construir uma economia solidária baseada em
cooperativas para por um fim, ou sair do capitalismo, é muito velha,
de P.-J. Proudhon na década de 1840; a ideia de fazendas estatais
administradas por trabalhadores é de Louis Blanc, no período já
mencionado. As duas abordagens falharam na criação de algo capaz de
acabar com o capitalismo nestes 150 anos e não está claro porque
devemos tentá-las uma vez mais.
Uma ideia diferente de
unidade da esquerda é a que chama o Partido Socialista
Revolucionário dos Trabalhadores. Mas essa ideia está enraizada na
tradição Marxista. A ideia ignora debates muito sérios, em
específico sobre o poder do Estado, o papel dos sindicatos,
eleitoralismo, democracia representativa vs participativa,
vanguardismo etc. Não se preocupa que uma abordagem baseada na
captura de estados individuais possa alcançar qualquer coisa sob a
globalização neoliberal.
Enquanto ambos
Marxistas, social democratas e nacionalistas estão de acordo com um
projeto de partidos políticos capturando o poder do Estado, o
anarquismo surge como um movimento ideológico socialista da classe
trabalhadora que rejeita exatamente essa abordagem. É uma crítica
do programa político Marxista padrão, mas amarrado a uma distintiva
análise anarquista do próprio Estado como um lugar fundamental do
governo das classes minoritárias.
Agora, pode haver muitas
ideias em comum nos ramos Marxista e anarquista da família
socialista, tais como a necessidade da luta de massas da classe
trabalhadora, anticapitalismo etc. Mas há diferenças filosóficas
profundas.
Elas incluem, mas não
estão limitadas, por um lado, à teoria, como a análise anarquista
muito diferente do que o Estado é e como ele funciona, o que é
classe, se o capitalismo pode ser progressivo etc. Essa abordagem
leva à visão anarquista de que o Estado e os partidos que visam Seu
poder não podem ser usados para criar uma ordem social livre,
não-capitalista. Por outro lado, no que diz respeito à aplicação,
ver também a insistência veemente do anarquismo na independência
democrática e coletiva e na liberdade individual dentro de uma
sociedade cooperativa comunitária; contra a abordagem centrada no
Estado e no partido que dominou o Marxismo. Uma abordagem, localizada
em seu próprio cânone histórico, que os anarquistas argumentam,
entre outras reivindicações atribuídas a ela, dá ao Marxismo sua
natureza fundamentalmente autoritária e antidemocrática.
Essas diferenças não
são uma questão de dogmatismo ou sectarismo. Elas também não
serão apagadas em nome da “unidade de esquerda”, que
efetivamente coloca a esquerda sul-africana na trilha estatista.
Óbvio que há e haverá
muitas áreas de cooperação e campanhas – ou haveria realmente
alguma divisão séria sobre, por exemplo, a oposição à violência
de gênero, a mudança climática, a organizações por local de
trabalho, a luta por reforma agrária?
E haverá sempre, no entanto, divisões
sobre os modos de perseguir esses objetivos, sobre a visão de longo
prazo e assim por diante, de acordo com os ditames das diferenças
ideológicas.
Silenciar o debate em
nome da unidade pode até ser algo bem intencionado, mas acaba com
debates úteis e espaços democráticos. Além disso, prefigura uma
política que enxerga a diferença como perigosa. Historicamente,
quando levados ao extremo, vemos Marxistas no poder do Estado
permitindo a prisão, o exílio ou a execução da oposição de
esquerda e governos social-democratas esmagando revoluções.
O que é de maior
importância é a unidade através da organização e da luta da
classe trabalhadora. Significa também perceber a inevitabilidade do
conflito, usando-o como meio de desenvolvimento institucional e
teórico da revolução. Certamente, um programa de ação é
necessário se essas, nossas organizações buscam a transformação
social, e se nós queremos criar unidade através dos muitos locais
de luta e organização da classe trabalhadora.
No entanto, esse
programa, essa filosofia, esses conceitos-chave e ideias para
mudança e reconstrução devem ser testados e reformulados na luta.
E para nós, luta não significa só a luta por melhores condições
cotidianas de trabalho e de vida, maiores liberdades políticas e
assim por diante. Também envolve o constante e consistente
desenvolvimento de ideias e práticas, o que requer o engajamento de
ideias num amplo, honesto, crítico e autorreflexivo caminho,
contribuindo para o desenvolvimento de instrumentos para a luta de
classes socialista e revolucionária: a organização dos
trabalhadores (como sindicatos e organizações comunitárias) para
construir o poder da reconstrução socioeconômica completa (a
revolução).
Essa luta interna de
desenvolvimento nos movimentos sociais deve ser travada como uma
batalha de ideias entre, sim, conjuntos ideológicos que concorrem
por influência nele, mas não pela sua imposição ao movimento de
massas. Afirmar que sua teoria não apenas compreende o caminho da
história, mas a eventualidade do destino e, portanto, sua própria
pureza teórica, é pura ilusão.
Nós podemos prever com segurança padrões particulares baseados em precedentes históricos, mas afirmações e teleologias tão definidas não são científicas, nem críticas e efetivamente impõe uma reivindicação e uma estrutura de liderança. Essas formas de liderança desenvolvem e afirmam o controle inamovível sobre os movimentos, sugam sua vida criativa e são fundamentalmente autoritários, não importa as características individuais iniciais daqueles que as fazem.
Nós podemos prever com segurança padrões particulares baseados em precedentes históricos, mas afirmações e teleologias tão definidas não são científicas, nem críticas e efetivamente impõe uma reivindicação e uma estrutura de liderança. Essas formas de liderança desenvolvem e afirmam o controle inamovível sobre os movimentos, sugam sua vida criativa e são fundamentalmente autoritários, não importa as características individuais iniciais daqueles que as fazem.
É profundamente enganoso apresentar a teoria como uma distração inútil da luta, na medida em que elas se moldam e se constroem mutuamente. Abordagens antiteóricas interpretam a diferença como um problema de dogma ou sectarismo – e, portanto, não podem ver que as diferenças são úteis – ou apresentam a teoria como uma indulgência preguiçosa do “gabinete” que nos impede de “fazer” as coisas. Mas a teoria é tanto um processo quanto um instrumento da ação humana, e a teoria socialista não pode, no entanto, estar afastada da ação socialista progressista.
Assim, qualquer apela à unidade da esquerda, não importa o quão bem intencionado esteja, falha em demonstrar o fato de que existem muitas ideologias de esquerda e perde o ponto, no geral, sobre aquilo que deveria orientar a revolução socialista que muitos de nós estamos trabalhando para acontecer.
O que devemos pensar, ao invés disso, é a construção e o fortalecimento de uma frente da classe trabalhadora, baseada em movimentos comunitários, organizações de esquerda, cooperativas etc., que possam cooperar em campanhas e demandas específicas. Esses movimentos devem ser internamente democráticos, politicamente plurais, nos quais as organizações de esquerda possam cooperar umas com as outras – e francamente, o que é muito mais importante – engajar movimentos de massas. Movimentos em que as diferentes perspectivas são encorajadas, desenvolvidas e testadas. Nenhuma organização abre mão de independência política – que é o direito de ter, expressar e fazer campanhas em defesa de seus pontos de vista – em nome de unidade, mas todas podem cooperar em discussões específicas.
A ideia não é abrir mão das diferenças, e criar um partido para a classe trabalhadora, mas unificar pequenas e grandes organizações de classe; a ideia não é fingir que as diferenças não existam, ou substituir o movimento da classe trabalhadora por uma única ideologia; a ideia é que a diferença e o debate são essenciais, e não antiquados, dogmáticos, sem sentido. A única coisa que destroem é a a autoridade centralizada, a ditadura.
Isso não significa que uma conferência ou um simpósio de esquerda seja em si inútil, mas tentativas anteriores quase certamente acabaram em diferentes organizações e indivíduos afirmando suas posições, sem uma discussão útil de convergência ou divergência. Mais importante é construir debates e discussões dentro de movimentos mais amplos da classe trabalhadora, além da esquerda, onde haja o envolvimento da classe com diferentes ideias, o teste da prática, usando uma série de workshops, encontros, lugares, mídias e campanhas. Nesse tipo de situação existe uma batalha de ideias e uma batalha pela liderança das ideias, com toda a certeza, ao mesmo tempo em que se protege contra a manipulação dos processos, contra o fechamento de debates por rótulos ou a política demagógica do “grande homem”.
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