Em Defesa da Autodefesa


Escrito por Huey P. Newton e publicado originamente no jornal Black Panther em 16 de Novembro de 1968, página 12.
Disponível em <https://www.prisoncensorship.info/archive/etext/bpp/bpp161168.htm>
Huey sobre a relação de Anarquistas e Individualistas com a luta revolucionária e o Movimento pela Libertação Negra




Nós devemos compreender que há uma diferença entre a rebelião dos anarquistas e a revolução negra ou a libertação da colônia negra.

Esta é uma sociedade de classes; sempre foi. Essa sociedade de classes reacionária limita os indivíduos, não apenas em termos de sua ocupação, mas também em relação à auto expressão, à mobilidade, à liberdade de serem criativos e fazerem qualquer coisa que queiram fazer.

A sociedade de classes impede isso. Isso é verdade não apenas para a massa da classe inferior ou subjugada. Também é verdade para a classe dominante, a classe superior. Essa classe também limita a liberdade das almas individuais das pessoas que a compõe.

Na América, não temos apenas uma sociedade de classes, temos também um sistema de castas e as pessoas negras são encaixadas na mais baixa casta. Elas não têm mobilidade para subir a escada de classes. Elas não têm o privilégio de entrar na estrutura dominante.

Dentro da classe dominante há objeções (resistência?), porque as pessoas descobriram que estão completamente sujeitas às vontades da administração e aos manipuladores. Isso produz um fenômeno muito estranho na América, isto é, muitos dos estudantes rebeldes brancos e dos anarquistas são descendentes dessa classe superior. Certamente, muitos deles têm origem na classe média e até mesmo em camadas superiores. Eles veem os limites impostos sobre eles e agora se esforçam, como todo mundo, para conquistar a liberdade de sua alma, a liberdade de expressão e a liberdade de movimento, sem os limites artificiais de seus antigos valores.

Negros e pessoas de cor na América, confinados dentro do sistema de castas, são discriminados enquanto um grupo de pessoas. Não é uma questão de liberdade individual como é para os filhos das classes superiores. Nós não alcançamos o ponto de tentar libertar a nós mesmos individualmente porque nós somos dominados e oprimidos enquanto um grupo de pessoas.

Parte das pessoas deste país – uma grande parte – faz parte da juventude. Mas eles não estão fazendo isso enquanto um grupo de pessoas porque, enquanto grupo, eles já são livres até certo ponto. O problema deles não é realmente um problema coletivo, porque eles podem facilmente integrar a estrutura. Potencialmente, eles têm mobilidade o suficiente para fazer isso: são educados, são “o futuro do país” e assim por diante. Eles podem ganhar certa quantidade de poder sobre a sociedade integrando o círculo dominante.

Mas eles veem que mesmo dentro do círculo dominante, ainda há antigos valores que não respeitam o individualismo. Eles se veem subjugados. Não importa a classe a que pertençam, eles se veem subjugados por causa da natureza dessa sociedade de classes. Então a luta deles é pela libertação da alma dos indivíduos.

Isso produz outro problema. Eles estão sendo governados por forças alienígenas que não tem nada a ver com a liberdade de expressão individual. Eles querem fugir disso, acabar com isso, mas não veem a necessidade de formar um movimento estruturado, uma verdadeira vanguarda disciplinada. Seu raciocínio é que, estruturando uma organização disciplinada, irão substituir a velha estrutura por outras limitações. Eles temem que assim estejam se preparando para dirigir as pessoas, limitando, mais uma vez, o indivíduo.

Mas o que eles não entendem, ou parece que eles não entendem, é que enquanto existir o complexo militar-industrial, a estrutura de opressão sobre o indivíduo continuará existindo. O indivíduo estaria ameaçado mesmo se conseguisse a liberdade que procura. Estaria ameaçado porque haverá um grupo inferior organizado sempre pronto para tirar sua liberdade individual.

Em Cuba houve uma revolução, houve um grupo de vanguarda disciplinado, e eles perceberam que o Estado não desapareceria até que o imperialismo fosse completamente eliminado, estrutural e filosoficamente, ou o pensamento da burguesia não seria transformado. Tendo caído o imperialismo, eles poderão ter seu Estado comunista e o Estado ou as fronteiras nacionais, desaparecerão.

Neste país, os anarquistas parecem sentir que, se eles se expressarem individualmente e tenderem a ignorar as limitações impostas a eles, sem lideranças e sem disciplina, eles poderão se opor ao Estado extremamente disciplinado, organizado e reacionário. Isso não é verdade. Eles serão oprimidos enquanto o imperialismo existir. Você não pode se opor a um sistema como esse sem uma organização que seja ainda mais disciplinada e dedicada do que a estrutura à qual você se opõe.

Eu posso entender o desejo dos anarquistas de ir direto do Estado para o não-Estado, mas, historicamente, isso é errado. No que me diz respeito, pensando na recente Revolução Francesa, a razão de o levante ter falhado é simplesmente porque os anarquistas franceses, que por definição não estavam organizados, não tinham pessoas confiáveis o suficiente, no que diz respeito às massas populares, para substituir DeGaulle e seu governo. Agora, as pessoas estão céticas quanto ao Partido Comunista e outros partidos progressistas porque eles não ficaram lado a lado com as pessoas de vida média. Esses partidos ficaram para trás com as pessoas, então perderam respeito e essas pessoas buscaram orientação nos estudantes e anarquistas.

Mas os anarquistas eram incapazes de oferecer um programa estrutural para substituir o governo DeGaulle. Então as pessoas foram forçadas a voltar para ele. Não foi culpa das pessoas; foi culpa de Cohn-Bendit e de todos os outros anarquistas que sentiram que poderia simplesmente ir do Estado para o não-Estado.

Neste país – voltando para casa, a América do Norte – nós podemos ficar do lado dos estudantes radicais. Nós devemos tentar encorajá-los e persuadi-los a se organizar e a forjar uma ferramenta cortante afiada.

Para fazer isso, eles devem ser disciplinados e, pelo menos, substituir filosoficamente o sistema. E isso não significa afirmar que isso irá, por si só, libertar o indivíduo. O indivíduo não será livre até que o Estado deixe de existir, e eu acho – não querendo ser redundante – que os anarquistas não poderão substituí-lo imediatamente.

No que diz respeito aos negros, não estamos ligados em tentativas de atualizar ou expressar nossas almas individuais porque somos oprimidos não enquanto indivíduos, mas enquanto um grupo inteiro de pessoas. Nossa evolução, ou nossa libertação, tem como premissa a libertação de nosso grupo, a libertação até certo ponto. Depois que conquistarmos nossa libertação, nosso povo não será livre. Eu posso imaginar que no futuro os negros se rebelarão contra a liderança organizada que os próprios negros estruturaram. Eles verão que haverá limitações, limitando-os enquanto indivíduos e limitando sua liberdade de expressão. Mas isso é só depois que os negros se tornarem livres enquanto grupo.

Isso é o que torna nosso grupo diferente dos anarquistas brancos – além do fato de seu grupo já ser livre. Agora eles se esforçam para libertar seus indivíduos. Essa é a grande diferença. Nós não estamos lutando por liberdades individuais, estamos lutando por liberdades coletivas. No futuro, provavelmente haverá uma rebelião em que os negros dirão: “Nossas lideranças estão limitando nossa liberdade com uma disciplina rígida. Agora que somos livres, queremos nossas liberdades individuais, que nada tem a ver com grupos organizados ou o Estado.” E o grupo irá se desorganizar, assim como deveria.

Mas, hoje, enfatizamos a disciplina, enfatizamos a organização, não enfatizamos drogas psicodélicas e todas as outras coisas que estão relacionadas com a expansão individual da mente. Estamos tentando conquistar a verdadeira liberdade de um grupo de pessoas, e isso faz a nossa luta de alguma forma diferente da dos brancos.

Agora, o que elas têm em comum? É a mesma pelo fato de ambos estarem lutando pela liberdade. Eles não serão livres – anarquistas brancos não serão livres – até nós sermos livres, o que faz da nossa luta uma luta deles, de verdade. Os imperialistas e o sistema capitalista burguês burocrático não lhes dariam liberdade individual enquanto mantém todo um grupo de pessoas, com base na raça ou na cor, oprimido enquanto um grupo. Como eles esperam ter liberdade individual quanto os imperialistas oprimem nações inteiras? Até nós conquistarmos a liberdade enquanto um grupo, eles não ganharão qualquer liberdade enquanto indivíduos. É isso que faz das nossas lutas uma só, e nós devemos manter isso em perspectiva e sempre procurar ver as semelhanças e diferenças nela.

Há uma enorme quantidade de diferenças e há certa quantidade de semelhanças entre os dois casos. Ambos estão se esforçando pela liberdade e ambos se esforçam pela libertação de seu povo, mas um está um patamar a frente do outro. Os anarquistas estão num patamar mais avançado, mas apenas em teoria. Quanto à realidade das condições, eles não deveriam estar mais avançados porque deveriam ver a necessidade de eliminar a estrutura imperialista através de grupos organizados assim como nós devemos estar organizados.

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