Anarquismo e Organização: Uma Carta Para a Esquerda

Escrito por Murray Bookchin e publicado originalmente no jornal New Left Notes em 15 de Janeiro de 1969.
Ensaio de Murray Bookchin em resposta a artigo de Huey P. Newton publicado no jornal Black Panther.

Há um antigo mito que os anarquistas não acreditam em organização para a promoção da atividade revolucionária. Esse mito foi acordado por Marcuse, após um longo descanso, numa entrevista ao L’Express meses atrás e reiterado por Huey Newton em seu “Em defesa da autodefesa”, que o New Left Notes [1] decidiu reimprimir na recente edição da Convenção Nacional.
Argumentar sobre a questão “organização” versus “não-organização” é ridículo; esse assunto nunca esteve em disputa entre anarquistas sérios, exceto talvez por aqueles solitários “individualistas” para quem a ideologia está enraizada mais num variante extremo do liberalismo clássico do que no anarquismo. Sim, anarquistas acreditam em organização – nacional e internacional. A organização anarquista tem variado de grupos altamente descentralizados a movimentos de “vanguarda” com muitos milhares de pessoas, como a FAI espanhola, que funcionou de maneira extremamente coordenada.
A verdadeira questão nesse problema não é organização versus não-organização, mas sim qual tipo de organização. O que os diferentes tipos de organização anarquista têm em comum é que elas são desenvolvidas de baixo para cima, não criadas de cima para baixo. São movimentos sociais, combinando um estilo de vida criativo e revolucionário com uma teoria revolucionária criativa, não partidos políticos, cujo nó da vida é indistinguível do ambiente burguês ao redor e cuja ideologia é reduzida a rígidos “programas experimentados e testados”. Essas organizações tentam refletir o quanto é humanamente possível a sociedade livre que elas buscam alcançar, e não duplicar servilmente o sistema predominante de hierarquia, classe e autoridade. Elas são construídas sobre grupos de afinidades de irmãos e irmãs, cuja capacidade de ação coletiva está embasada na iniciativa, em convicções livremente aceitas e um profundo comprometimento pessoal, não um aparato burocrático, desenvolvido por dóceis filiações e manipulado desde o topo por um punhado de “lideranças” conscientes.
Eu não sei contra quem Huey está argumentando quando fala de “anarquistas” que acreditam que tudo o que devem fazer é “se expressarem individualmente” para alcançar a liberdade. Tim Leary? Allen Ginzberg? Os Beatles? Com certeza não são os revolucionários anarquistas comunistas que conheço – e conheço um grande e representativo número deles. Também não está claro para mim onde Huey conseguiu suas informações sobre as revoltas de Maio-Junho na França. O “Partido Comunista e outros partidos progressistas” da “esquerda” francesa não “ficaram para trás” meramente, como Huey parece acreditar; essas organizações “disciplinadas” e “centralizadas” tentaram de todas as maneiras obstruir a revolução e redirecioná-la aos canais tradicionais do parlamentarismo. Mesmo a Federação de Estudantes Revolucionários (Trotskista) e os grupos Maoístas “disciplinados”, “centralizados”, fizeram oposição aos estudantes revolucionários taxando-os como “ultra-esquerdistas”, “aventureiros” e “românticos” até o primeiro confronto de rua em Maio. Caracteristicamente, a maioria das organizações “disciplinadas” e “centralizadas” da “esquerda” francesa também acabou ficando para trás nos eventos, e no caso do “Partido Comunista e outros partidos progressistas”, traiu vergonhosamente os estudantes e trabalhadores para o sistema.
Eu achei curioso que, enquanto para Huey as retaliações dos stalinistas franceses terem simplesmente “ficado para trás do povo”, ele considera os anarquistas e Danny Cohn-Bendit responsáveis pelas pessoas terem sido “forçadas a voltar para DeGaulle”. Eu visitei a França pouco depois da revolta de Maio-Junho e eu posso comprovar com pouca dificuldade como Danny Cohn-Bendit, o Movimento 22 de Março e os anarquistas tentaram desenvolver, resolutamente, as formas de assembleia e os comitês de ação em um “programa estrutural” (de fato, foi muito além de um mero “programa”) para substituir o governo DeGaulle. Eu poderia mostrar muito claramente como eles tentaram fazer com que os trabalhadores mantivessem o controle das fábricas e estabelecessem contatos econômicos diretamente com os camponeses: em resumo, como eles tentaram substituir a estrutura política e econômica da França por formas revolucionariamente viáveis e criativas. Nisso, encontraram uma obstrução contínua dos partidos “disciplinados”, “centralizados” da “esquerda” francesa, incluindo várias seitas Trotskistas e Maoístas.
Há outro mito que precisa ser explodido – o mito de que as revoluções sociais são feitas por quadros rigorosamente disciplinados, orientados por uma liderança altamente centralizada. Todas as grandes revoluções sociais são resultado do trabalho de arraigadas forças históricas e contradições, para as quais os revolucionários e suas organizações contribuíram muito pouco e, na maioria dos casos, julgaram de forma completamente equivocada. As revoluções, por si mesmas, surgem espontaneamente. O “partido glorioso” geralmente fica para trás nesses eventos- e, caso a insurreição seja bem-sucedida, ele intervém para comandar, manipular e, quase invariavelmente, distorcê-la. É aí que a revolução atinge seu verdadeiro período crítico: o “partido glorioso” recriará outro sistema hierárquico, de dominação e poder, em sua sagrada missão de “proteger a revolução” ou se dissolverá, como tal, dentro da revolução junto com a dissolução da hierarquia, da dominação e do poder? Se uma organização revolucionária não está estruturada para se dissolver nas formas populares criadas pela revolução uma vez que sua função enquanto catalisador está completa; se suas próprias formas não são similares à sociedade libertária que pretendem criar, de modo que possa desaparecer nas formas revolucionárias do futuro – então a organização se torna um veículo que carrega as formas do passado na revolução. Ela se torna um organismo auto reprodutor, uma máquina estatal que, longe de “desaparecer”, perpetua todas as condições arcaicas para sua própria existência.
Há muito mais mito do que realidade na afirmação de que um partido rigorosamente “centralizado” e “disciplinado” promove o sucesso da revolução. Os Bolcheviques foram separados, divididos e atormentados por lutas faccionais de Outubro de 1917 a Março de 1921. Ironicamente, só depois dos últimos do Exército Branco terem sido expulsos da Rússia que Lênin conseguiu centralizar e disciplinar completamente seu partido. Muito mais reais têm sido as incontáveis traições arquitetadas pelos partidos hierárquicos, “disciplinados”, altamente “centralizados” da “esquerda”, como o Social Democrata e o Comunista.
Elas seguiram quase inexoravelmente do fato de que toda organização (por mais revolucionária que seja sua retórica e por mais bem-intencionados que sejam seus objetivos) cujo modelo estrutural seja o próprio sistema que ela deseja derrubar torna-se assimilada e subvertida pelas relações burguesas. Parece que a eficácia se torna a fonte de suas maiores falhas.
Inegavelmente surgem problemas que só podem ser solucionados por comissões, pela coordenação e por uma alta dose de autodisciplina. Para o anarquista, comissões devem ser limitadas pelas tarefas práticas que necessitam de sua existência, e devem desaparecer uma vez que suas funções tenham sido completas. Coordenação e autodisciplina devem ser voluntariamente alcançadas, em virtude do alto nível moral e o do calibre intelectual do revolucionário. Buscar menos que isso é aceitar, como um “revolucionário”, um robô irracional, uma criatura de formação autoritária, um agente manipulável cuja perspectiva e a personalidade são totalmente estranhas, antitéticas, de fato, para qualquer sociedade que possa ser remotamente considerada livre.
Nenhum anarquista sério discordará do argumento de Huey sobre a “necessidade de eliminar a estrutura imperialista através de grupos organizados”. Se for possível, trabalharemos juntos. Devemos reconhecer também que, nos Estados Unidos, o coração do Imperialismo mundial hoje, foram desenvolvidas uma economia e a tecnologia que poderiam remover, praticamente da noite para o dia, todos os problemas que Marx acreditava que justificavam a necessidade do Estado. Seria um erro desastroso lidar com uma economia de abundância em potencial e produção cibernética a partir de uma posição teórica que ainda está enraizada numa era tecnológica baseada em carvão, máquinas cruas, longas jornadas de trabalho e escassez de material. É hora de parar de tentar aprender com a China de Mao e a Cuba de Castro – e vermos a notável realidade econômica que está sob nossos olhos para todos os homens desfrutarem quando o colosso burguês Americano puder ser derrubado e seus recursos trazidos de volta ao serviço para a humanidade.
NOTAS
[1] New Left Notes era o órgão de comunicação  do Students for Democratic Society (SDS)

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